“As crises de legitimidade sempre têm algo a ver com a incapacidade das sociedades em criar lealdade a seus valores básicos; se esses valores se tornam autodestrutivos, a crise torna-se aparente.” (Ralf Dahrendorf)
O sociólogo alemão Ralf Dahrendorf, que acompanhou os terríveis anos nazistas bem de Berlim, escreveu em 1985 um livro chamado A Lei e a Ordem, onde traçou alguns paralelos entre a situação que estavam vivendo os países desenvolvidos nesta época e a era que antecedeu o nazismo. Seu principal alerta era quanto ao caminho para a anomia, que costuma anteceder regimes totalitários. Afinal, os índices de criminalidade estavam em alta nesses países desenvolvidos, ameaçando a paz e a ordem dos cidadãos.
Em primeiro lugar, é interessante definir o que exatamente o autor pretendia com o uso do termo anomia, resgatado na sociologia por Durkheim, em seu estudo sobre o suicídio. Dahrendorf estava preocupado com a incidência crescente da impunidade, cuja conseqüência é a anomia, “quando um número elevado e crescente de violações de normas torna-se conhecido e é relatado, mas não é punido”. Com isso, ele não pretende justificar os crimes individuais, mas apenas reconhecer que a “anomia é uma condição social, que pode fazer brotar vários tipos de comportamento, como ocorreu durante a queda de Berlim, em 1945”. Logo, a conexão entre anomia e crime não é causal. “A anomia fornece uma condição básica, onde as taxas de crimes tendem a ser elevadas”.
No dicionário Aurélio, o termo anomia está definido como “ausência generalizada de respeito a normas sociais, devido a contradições ou divergências entre estas”. Isso reforça o que o sociólogo tinha em mente, ao afirmar que “a anomia é então concebida como uma ruptura na estrutura cultural, ocorrendo especialmente quando houver uma aguda disjunção entre, de um lado, as normas e os objetivos culturais e, de outro, as capacidades socialmente estruturadas dos membros do grupo em agirem de acordo com essas normas e objetivos”. No estado de anomia, as normas reguladoras do comportamento das pessoas perderam sua validade. As violações de normas simplesmente não são mais punidas.
“Esse é um estado de extrema incerteza, no qual ninguém sabe qual comportamento esperar do outro, sob determinadas situações”. As normas são válidas se e quando elas forem tanto eficazes como morais, ou seja, julgadas corretas. A anomia é, pois, “uma condição em que tanto a eficácia social como a moralidade cultural das normas tendem a zero”. Todas as sanções parecem ter desaparecido neste quadro social, e isto leva ao desaparecimento do poder legítimo, transformado em poder arbitrário e cruel. O “contrato social”, entendido aqui como normas aceitas e mantidas através de sanções impostas pelas autoridades concernentes, é rasgado, restando o vácuo em seu lugar. Tudo passa a ser visto como permitido, já que nada mais parece ser punido.
Uma das causas que levam a esta anomia está na imagem de homem romântica, porém errada, que muitos alimentam desde Rousseau e seu “bom selvagem”. Essas pessoas “supunham que bastava as pessoas serem liberadas das restrições impostas a suas ações pela história, pela cultura e pela sociedade, para que pudessem viver, felizes e em paz, para todo o sempre”. Para Dahrendorf, “essa imagem do homem é um dos marcos principais no caminho para a anomia”. Ainda que bem intencionados, esses românticos teriam buscado Rousseau, mas encontrado Hobbes, com a luta de todos contra todos.
Quando as ligaduras, os “liames culturais associados com certas unidades básicas às quais os indivíduos pertencem, em virtude de forças fora de seu alcance, mais do que escolha própria”, estão enfraquecidas, o mundo tende a ser mais desorientador e desconcertante. Não é fácil achar substitutos para tais ligaduras, que sustentam os principais valores de uma sociedade. O enfraquecimento progressivo desses valores morais, assim como a impunidade, o declínio na validade das normas sociais, são ingredientes perigosos que podem levar à anomia. Os costumes e as leis são complementares: quanto mais sólidos os costumes, mais eficientes tendem a ser as leis. O assustador é quando ambos – costumes e leis – perderam o valor.
Não há como ler o livro de Dahrendorf sem pensar na situação atual do Brasil. A impunidade é crescente, e os valores básicos estão completamente deturpados ou enfraquecidos. Políticos cometem crimes à luz do dia, nada acontece, e os próprios eleitores ainda votam neles novamente. A crença de que as leis não funcionam mais é generalizada. O país caminha, infelizmente, para a anomia descrita pelo sociólogo. Algo precisa ser feito. No próprio livro, podemos ter alguma idéia do que precisa ser feito.
Em primeiro lugar, é importante acertar o diagnóstico do problema. Não basta repetir que a causa dos males reside somente na economia, e que necessitamos apenas de políticas sociais, pois isso não é verdade. O buraco é bem mais embaixo. Vivemos uma crise de valores morais, uma falência das instituições necessárias para a manutenção da lei e da ordem, e um problema de pobreza agravado, muitas vezes, pela própria ação do Estado. Mas nem tudo está perdido. E a anomia ainda pode ser evitada, mesmo que leve tempo. Basta lembrarmos que os Estados Unidos e a Inglaterra, principais países citados por Dahrendorf no livro, deram a volta por cima. Reagan e Thatcher, é verdade, deram importantes contribuições. Mas elas não seriam suficientes nem possíveis sem todo um trabalho de base que tivesse alterado a mentalidade do povo e seus valores morais, abrindo o caminho para as mudanças institucionais.
Foge ao escopo deste artigo focar nas soluções do problema. Mas não custa, ainda que en passant, apelar para o sucinto resumo do próprio autor. “A resposta para o problema de lei e ordem pode ser colocada numa única expressão: construção das instituições”. O autor teria, com certeza, o apoio do prêmio Nobel de economia, Douglass North, que vem batendo incansavelmente nesta tecla. É mais fácil falar que fazer, claro. Mas isso não muda o fato de que compreender o que deve ser feito já é um bom começo. Estamos longe disso ainda, em minha opinião. Nem todos entendem o valor das instituições. E é preciso explicar também que isto não significa que quanto mais instituições, melhor. O outro perigo, além da anomia, é a hipernomia, o crescimento desordenado de normas, sanções e instituições, que gera apenas mais incerteza e desconfiança.
Com isso em mente, podemos concluir nas palavras do próprio Dahrendorf: “Somente através de um esforço consciente para construir e reconstruir as instituições podemos esperar garantir nossa liberdade em face da anomia”.
Texto presente em “Uma luz na escuridão”, minha coletânea de resenhas de 2008.
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