Por João Cesar de Melo, publicado no Instituto Liberal
Até 30 anos atrás no Brasil e 50 anos atrás no resto do mundo, o surf era um esporte marginalizado, visto como coisa de vagabundo. O que acabou com esse preconceito? O que transformou o surf num esporte respeitado? Não… Não foram campanhas de conscientização promovidas por governos. Não foi nenhum movimento coletivista que cobrou cotas na mídia e incentivos financeiros ao esporte. Foi o capitalismo. Foram pessoas visando o lucro. Foi o conjunto de ambições individuais que transformou o surf num esporte admirável.
Desde o começo do surf moderno, quase um século atrás, seus praticantes o tinham como um estilo de vida quase transcendental, que os distinguia do restante da sociedade. Sentiam-se puristas. Paz, amor e surf. Eram pequenos grupos de amigos que surfavam praias desertas, livres das multidões e das pressões urbanas. Mas essa “transcendentalidade” era difícil de ser mantida. As pranchas que improvisavam para surfar eram péssimas. Sem roupas adequadas, passavam muito frio no inverno. A polícia os perseguia. Os motoristas dos ônibus os rejeitavam. Dias de boas ondas surgiam no meio da semana, coincidindo com o horário de trabalho. O simples ato de ir surfar exigia grandes sacrifícios.
As necessidades e os desejos eram comuns: Precisavam de equipamentos mais adequados; desejavam mais respeito da sociedade e uma forma de se sustentarem sem terem que se corromper aos rigores de expedientes formais.
Naturalmente, todas essas necessidades e desejos foram sendo realizados…
Alguns surfistas começaram a se destacar pela qualidade das pranchas e dos equipamentos que produziam para si mesmos, gerando encomendas de amigos. Assim, começaram a ser fabricadas as primeiras pranchas feitas especialmente para o surf; e também bermudas adequadas, roupas de neopreme para suportar a água fria e outros acessórios.
A melhoria das condições da prática do esporte não apenas atraiu mais adeptos, mas também melhorou as performances dentro d’água, fazendo os surfistas se tornarem cada vez mais competitivos uns com os outros, motivando a realização de pequenos campeonatos entre amigos e entre grupos de cidades diferentes.
Aqueles surfistas que começaram a fabricar os equipamentos, também começaram a competir entre si pela preferência de seus colegas-consumidores. Enxergando que a melhor forma de manterem seu estilo de vida no surf era desenvolverem-se como fabricantes de equipamentos do próprio esporte, estes surfistas-empresários passaram a divulgar suas marcas organizando campeonatos e patrocinando os colegas mais habilidosos, que passaram a ser tratados como atletas. O prestígio de cada atleta passou a ser medido pelo número de vitórias. O prestígio de cada campeonato passou a ser medido pela premiação que oferecia.
As marcas cresciam na proporção de aumento no número de praticantes, o que fez surgir também uma grande massa de pessoas que não apenas prestigiava os eventos e admirava o estilo de vida dos surfistas, mas também consumia os produtos relacionados a eles. As roupas dos surfistas começaram a produzidas também para quem não surfava. O sucesso das marcas era proporcional ao sucesso dos eventos que organizavam, dos atletas que patrocinavam e da qualidade dos produtos que ofereciam.
Pranchas e equipamentos melhores tornavam o esporte cada vez mais seguro e as performances cada vez mais arrojadas. Na disputa pelo mercado, as marcas profissionalizaram surfistas para que eles vivessem exclusivamente do surf, para se tornarem cada vez melhores, para ganharem cada vez mais campeonatos, para serem cada vez mais vistos pelos consumidores como símbolo da qualidade da própria marca. Em troca dos salários e das regalias, as marcas passaram a cobrar de seus atletas também uma conduta social exemplar, sem envolvimento em confusões ou com drogas, para que nada pudesse sujar a imagem da empresa − o capitalismo acabou com o estereótipo de surfista drogado e vagabundo.
Ídolos surgiram, assim como uma massa de moleques desejando ter a vida desses ídolos. Os salários e as premiações melhoravam ano após ano… O esporte passou a ser mais bem organizado com a criação de associações e categorias de competição. Diante de todo esse desenvolvimento, a mídia começou a enxergar um novo mercado de anunciantes. Empresas de outros segmentos também começaram a patrocinar os campeonatos para divulgar suas marcas.
O resultado desse conjunto de iniciativas e interações privadas é que hoje o surf é um esporte respeitado e admirado em todo o mundo, entre todas as camadas sociais. Sua indústria movimenta dezenas de bilhões de dólares, empregando centenas de milhares de pessoas. Seus ídolos ganham milhões. Muitos surfistas sequer precisam competir. Precisam, apenas, emprestar seu talento e sua imagem a campanhas de publicidade, na maioria das vezes em filmes e seções de fotos feitos em lugares paradisíacos, distantes do alvoroço das cidades.
Ou seja: os surfistas de hoje realizam os sonhos dos surfistas de décadas atrás. Tudo isso, vale salientar, graças às ambições de “meia-dúzia” de pessoas que, pensando em si mesmas, não apenas ofereceram melhores equipamentos aos colegas de praia, mas também transformaram um esporte numa referência de estilo de vida. Graças às ambições capitalistas daqueles que criaram as primeiras marcas de surf, hoje temos empresas gigantescas que patrocinam atletas e campeonatos e ainda viabilizam diversas ações sociais e ambientais em todo o mundo.
Para cada empresário do surf que enriqueceu, há dezenas de milhares de pessoas que podem adquirir pranchas, roupas e equipamentos a preços acessíveis, e o mais importante: têm o respeito da sociedade e apoio da família para surfar.
Para cada grande empresa do mercado do surf, há dezenas de pequenas marcas tentando abocanhar parte do mercado patrocinando surfistas amadores e eventos regionais.
Onde esteve o Estado nesse processo todo? Para a sorte do esporte, o Estado sempre esteve distante ou contra. Hoje, a polícia não mira os surfistas numa blitz como fazia antes. Hoje, a polícia sabe que no carro que leva um punhado de pranchas não estão vagabundos quase anônimos, mas sim cidadãos que sustentam um esporte que aparece tanto na campanha publicitária do lançamento de um novo automóvel, quanto na programação da Globo. Hoje, o Estado sabe que o surf é um esporte forte e independente. O surf não recebe dinheiro do Ministério dos Esportes. O surf não tem o menor interesse em fazer parte das Olimpíadas. O surf se sustenta. O surf continua marginal, porém, à margem apenas do Estado.
Graças às ambições individuais daqueles malucos de décadas atrás, o esporte cresceu tanto que hoje temos entre os surfistas juízes, artistas, celebridades e empresários dos mais diferentes setores; e engana-se quem diz que a popularização do surf tirou sua poesia, transformando um esporte numa mera cultura de massa.
Enquanto milhões de surfistas de fim de semana acotovelam-se nas praias urbanas, os surfistas de verdade, aqueles que têm o esporte como estilo de vida, usufruem de condições muito melhores para viajar para lugares distantes, livres das multidões. Contam com suporte para as viagens, com sites de previsão das condições do mar e ainda podem registrar com facilidade suas ondas em fotos e vídeos.
Daqui alguns dias Gabriel Medina, de 20 anos de idade, competirá na última etapa do circuito mundial com reais chances de se tornar o primeiro brasileiro campeão. Quem o fez? O Estado, por meio de programas, leis ou alguma coisa parecida? Não. Quem o fez foi seu pai, membro da primeira geração de surfistas profissionais e que há anos acompanha seu filho recebendo todo o suporte de uma empresa privada, que visa o lucro. Empresa criada por um surfista.
Graças às ambições de muitos empresários, daqui uns dias todos os surfistas e simpatizantes do esporte poderão assistir à final do circuito mundial, no Havaí, por meio de uma transmissão ao vivo, com diversas câmeras e entrevistas in loco, algumas com os atletas ainda dentro d’água. Desejando obter lucro, distribuirão não apenas prêmios aos competidores, mas também salários às centenas de pessoas que compõem a equipe técnica do circuito e ainda levarão alegria a dezenas de milhões de fãs do esporte espalhados pelo mundo.
Graças às ambições de outros empresários, um surfista pobre e sem talento – porém apaixonado – como eu, pode estar hoje na Califórnia surfando algumas das ondas que sempre sonhou e ainda compartilhar essas reflexões por meio de um computador que cabe na mochila e que se conecta a todo o mundo sem se utilizar sequer de um cabo.
O conjunto de iniciativas e interações privadas que tirou o surf da marginalidade é o mesmo que nos deu todas as facilidades e prazeres que desfrutamos hoje; e se ainda há muitos indivíduos que não desfrutam disso, é porque ainda há muito Estado entre as pessoas e a realização dos desejos dessas mesmas pessoas.