Um Cavalo e um Javali dividiam entre si um campo de pastagens, raízes e ervas. Incomodado com as reviradas destrutivas do Javali, o Cavalo resolveu aliar-se ao caçador para que este o livrasse do porco selvagem. O caçador lhe explicou que era necessário que o cavalo lhe servisse de montaria, com freio e arreios e assim poderiam expulsar ou matar o Javali, ficando a pastagem só para os cavalos.
Assim feito o acordo, o caçador abateu o Javali. Porém, levou o cavalo para sua casa, amarrou a rédea no madeiro, colocou ração no cocho e ele passou a ser seu animal de carga para o resto dos seus dias. A moral da fábula de Esopo é evidente: muitas vezes os homens incautos caem em pior condição acreditando estarem sendo ajudados. Pedem ajuda numa aliança perigosa àquele que vai, depois, traí-los. É a história por trás de A revolução dos bichos também, de Orwell.
O “cavalo” no caso são os brasileiros cansados de tanta corrupção, abuso de poder, da velha política, o “javali”. Fizeram, então, um pacto com o “caçador”, aquele que vai perseguir todos os javalis, promover uma grande caça às bruxas, aos corruptos, aos que destruíam o país. O problema é que o caçador não vai parar por aí: depois que eliminar o javali, o que virá em seguida?
Segundo a revista Crusoé, Rodrigo Maia, ícone da velha política, teria feito a seguinte avaliação: se hoje, quando o governo está dependente da aprovação da reforma, os bolsonaristas atacam desse jeito, imagine amanhã, se a proposta for aprovada, a economia decolar e o Planalto passar a nadar em dinheiro. Aí, sim, é que a ofensiva à política tradicional será ainda mais intensa, com risco até para a democracia. Eis o medo difuso no ar que paira sobre o Congresso.
O cavalo, cansado, indignado, revoltado, mas agindo mais com o fígado do que com o cérebro, pode ter feito uma aliança perigosa. Até porque essa aliança depende do clima constante de crise e revolução, para justificar a caça aos inimigos, aos javalis. Reparem que Filipe G. Martins, uma espécie de chanceler do B e olavete principal dentro do governo Bolsonaro, escreveu mensagens com teor claramente agitador e até leninista, como se “o povo” tivesse que ficar em permanente estado de mobilização para governar:
E a única forma de ativar a lógica da sobrevivência política é por meio da pressão popular, por meio da mesma força que converteu a campanha eleitoral do PR Bolsonaro em um movimento cívico e tornou possível sua vitória. É necessário, em suma, mostrar que o povo manda no país.
Todo líder autoritário e coletivista jura falar em nome do povo. Que povo é esse? Somos 200 milhões de brasileiros! Bolsonaro teve quase 58 milhões de votos, 10 milhões a mais do que o petista. É muito, mas não é “o povo”. Isso sem falar que, dos milhões que votaram em Bolsonaro, quantos de fato são bolsonaristas, e quantos escolheram o menor pior, demonstraram seu antipetismo? Quantos sabem quem é Olavo de Carvalho ou o que é guerra cultural?
O maior equívoco de análise dos bolsonaristas é acreditar que “o povo” está fechado com Bolsonaro, que o cavalo e o caçador estarão sempre juntos e unidos, pois um representa fielmente o outro. Nada mais falso! “O povo” quer emprego, menos violência, melhores escolas. A paciência com o presidente vai desaparecer rapidamente sem mudanças concretas.
Discursos em redes sociais não podem substituir isso. Podem, no máximo, gerar likes entre os bajuladores, a militância mais fanática. Mas “o povo” pode mudar rapidamente de gosto, pode migrar até mesmo para um Ciro Gomes da vida! O caçador Bolsonaro pode passar, quase da noite para o dia, a ser visto como o novo explorador, aquele que pretende amarrar o cavalo e usá-lo para seus próprios interesses. Ou como um caçador incompetente…
É por isso que conservadores reformistas, inspirados em Edmund Burke, não querem pactos personalistas com caçadores. Preferem apostar na construção gradual de instituições mais sólidas, sem colocar tudo abaixo no processo, sem destruir a política representativa (velha ou não) em nome do “povo”.
“A raiva e o delírio destroem em uma hora mais coisas do que a prudência, o conselho, a previsão não poderiam construir em um século”, constatou Burke. Em suas Reflexões sobre a Revolução em França, o “pai do conservadorismo”, que era um liberal Whig até perceber o risco jacobino, alertou:
Não ignoro nem os erros, nem os defeitos do governo que foi deposto na França e nem a minha natureza nem a política me levam a fazer um inventário daquilo que é um objeto natural e justo de censura. […] Será verdadeiro, entretanto, que o governo da França estava em uma situação que não era possível fazer-se nenhuma reforma, a tal ponto que se tornou necessário destruir imediatamente todo o edifício e fazer tábua rasa do passado, pondo no seu lugar uma construção teórica nunca antes experimentada?
O Brasil precisa de reformas! Precisa avançar, progredir, combater os javalis dentro das regras e instituições, com cautela e prudência, sem tacar fogo no pasto junto, sem convidar um caçador para assumir um poder arbitrário “em nome do povo”. Nunca esteve tão clara a divisão dentro da direita: há os que são partidários do cérebro, e aqueles cujo partido é o do fígado; há reformistas, e há revolucionários; há prudentes e também inconsequentes; há herdeiros de Burke e filhotes de Robespierre; há conservadores legítimos, e os jacobinos de direita, que se alimentam do clima revolucionário para avançar com um projeto de poder.
O cavalo precisa se livrar do javali, mas talvez essa seja uma meta utópica, talvez dê apenas para mitigar o estrago causado pelo porco selvagem. Afinal, há javalis até na América! É preciso saber conviver com ele, de forma realista, e costurar de maneira inteligente acordos que diminuam o seu escopo de atuação. É preciso ir limitando o espaço do bicho, de forma gradual. Mas é bom tomar cuidado para não destruir nossa própria liberdade no processo. Todo cuidado é pouco…
Rodrigo Constantino
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