Morreu hoje, aos 84 anos, o escritor italiano Umberto Eco, autor de O Nome da Rosa, que virou um clássico dos cinemas. Era uma das pessoas mais cultas e eruditas do mundo. Nicholas Nassim Taleb conta em seu livro Cisne Negro que a impressionante biblioteca de Eco, com mais de 30 mil livros, costuma despertar na maioria uma reação do tipo: “Nossa! Quantos livros o senhor já leu”.
Enquanto isso, uma minoria reagiria de outra forma: “Quantos livros existem que ainda não lemos”. Essa “antibiblioteca”, a coleção dos livros não lidos, serve para nos lembrar sempre da imensa quantidade de coisas que não sabemos, o que nos impõe certa humildade. Eco era desses, e escreveu alguns livros mais recentes em que ataca as teorias conspiratórias dos que precisam “saber de tudo”, encaixar todos os acontecimentos dentro de uma teoria simplista.
Sim, Eco tinha um viés mais de esquerda, mas não sejamos como eles, os esquerdistas radicais incapazes de separar as coisas. O homem era um escritor brilhante, e pouco importa o que preferia do ponto de vista político. Seus livros são interessantes, instigantes, e merecem ser lidos. Abaixo, uma resenha que escrevi para o blog antigo de O Cemitério de Praga, que não é dos melhores, mas que é boa leitura:
O encanto com as teorias conspiratórias
O escritor Umberto Eco completou 80 anos no último dia 5, e está de volta às manchetes literárias com seu novo romance O Cemitério de Praga, livro que acabo de ler (e recomendo). Trata-se de uma história envolvente, cujo personagem principal, o único importante que é criado pelo autor, não passa de um pulha, um canalha que aceita qualquer coisa em troca de dinheiro. Sua vida é uma série de farsas e crimes, a cada momento atendendo a um cliente de lado diferente, algumas vezes simultaneamente.
Mas eis o que eu gostaria de destacar do livro: o alerta de como é perigoso selecionar uma “raça” como bode expiatório para todos os males do mundo é válido e sempre atual. Os homens parecem inclinados a crer em teorias conspiratórias que simplificam um mundo complexo e jogam a responsabilidade de nossos problemas para ombros alheios. Se tais ombros forem de um povo minoritário e facilmente identificável, então o trabalho é mais fácil ainda.
O personagem principal, Simone Simonini, escreve em seu diário: “Sempre conheci pessoas que temiam o complô de algum inimigo oculto – os judeus para vovô, os maçons para os jesuítas, os jesuítas para meu pai garibaldino, os carbonários para os reis de meia Europa, o rei fomentado pelos padres para meus colegas mazzinianos, os Iluminados da Baviera para as polícias de meio mundo – e, pronto, quem sabe quanta gente existe por aí que pensa estar ameaçada por uma conspiração… Aí está uma forma a preencher à vontade, a cada um o seu complô”.
Por trás do encanto pelas teorias conspiratórias, jaz o ressentimento: “A que aspira cada um, tanto quanto mais desventurado for e pouco amado pela sorte? Ao dinheiro e, conquistado esse sem fadiga, ao poder (que volúpia em comandar um semelhante e em humilhá-lo!) e à vingança por todos os agravos sofridos (e todos sofreram na vida ao menos um agravo, por menor que tenha sido). […] Afinal, pergunta-se cada um, por que fui desfavorecido pela sorte (ou ao menos não tão favorecido quanto gostaria), por que me foram negados benefícios concedidos a outros menos merecedores do que eu? Como ninguém pensa que suas desventuras possam ser atribuídas à sua mediocridade, eis que se deverá identificar um culpado”.
Logo, muitos desejam encontrar este grupo, esta classe, esta raça responsável por seus problemas, suas misérias. O trabalho do criador de complôs fica então bastante facilitado, pois ele encontra um público ávido por suas invenções e mentiras. “Convém que as revelações sejam extraordinárias, perturbadoras, romanescas. Somente assim tornam-se críveis e suscitam indignação”. Além disso, “você jamais deve criar um perigo de mil faces, o perigo deve ter uma só, senão as pessoas se distraem”. Os judeus, povo durante muito tempo sem Pátria e, portanto, minoritário, relativamente fácil de ser identificado, e com muitos casos de sucesso material (até porque a Igreja sempre os ajudou, condenando a prática da usura entre seus seguidores), eram um alvo evidente para as teorias conspiratórias.
Como o russo Rachkovsky explica no livro: “Para ser reconhecível e temível, o inimigo deve estar em casa ou na soleira de casa. Eis por que os judeus. Eles nos foram dados pela Divina Providência, então vamos usá-los, meu Deus, e rezemos para que haja sempre um judeu a temer e a odiar. É necessário um inimigo para dar ao povo uma esperança. Alguém já disse que o patriotismo é o último refúgio dos canalhas: quem não tem princípios morais costuma se enrolar em uma bandeira, e os bastardos sempre se reportam à pureza da sua raça. A identidade nacional é o último recurso dos deserdados. Muito bem, o senso de identidade se baseia no ódio, no ódio por quem não é idêntico. É preciso cultivar o ódio como uma paixão civil. O inimigo é o amigo dos povos. É sempre necessário ter alguém para odiar, para sentir-se justificado na própria miséria. O ódio é a verdadeira paixão primordial”.
Foi desta forma que nasceu Protocolos dos Sábios de Sião, um conjunto de textos mentirosos que imputavam aos judeus um complô para dominar o mundo. Ele fora forjado pela polícia secreta do Czar Nicolau II, e ganhou inúmeras traduções pelo mundo todo, ajudando a disseminar o antissemitismo. Em 1921, o London Times descobriu as relações com o livro de Joly, publicado muitos anos antes, e denunciou os protocolos como uma falsificação. Mas o encanto pelas teorias conspiratórias falou mais alto, e o livro foi publicado várias vezes como autêntico depois disso. Hitler, em Minha Luta, chega a escrever que os protocolos são verdadeiros, e a melhor prova é que os judeus negam sua veracidade. Para o nazista, quando todos tiverem conhecimento dos incríveis planos judaicos, o mundo estará perto da “solução final”, ou seja, o extermínio desta “raça”.
O horror do Holocausto, resultado desta campanha antissemita intensiva ao longo de décadas, ainda está fresco na memória de muitos. Mas o risco é sempre real, especialmente em tempos de crises, pois os homens são suscetíveis a teorias conspiratórias mirabolantes, e os judeus sempre serão um alvo fácil. Nada mais reconfortante para os medíocres do que crer que seus infortúnios são obra de uma cúpula pequena reunida em locais secretos para construir complôs e dominar a humanidade. É tudo culpa “deles”. E assim os fracassados alimentam o ódio que aquece suas almas.
Rodrigo Constantino