Dois artigos merecem ser lidos no GLOBO de hoje. Um de Gil Castello Branco e outro de Carlos Andreazza. O editor da Record usa o conceito de antifrágil, de Nassim Taleb, para analisar o fenômeno Bolsonaro, que resiste a todo tipo de ataque da mídia e da máquina estatal. Mas reconhece que o próprio establishment também é antifrágil, ou seja, costuma se adaptar aos ventos da hora para sobreviver sem mudar radicalmente. Ele explica o conceito:
É conhecida a teoria — da obra de Nassim Taleb — da antifragilidade: a capacidade de prosperar no caos, de se beneficiar da adversidade, de avançar enquanto se imuniza, de se fortalecer sob pressão, aquela contra a qual a quase totalidade dos indivíduos sucumbiria. O elemento antifrágil seria como massa de pão: mais crescendo quanto mais socado.
Trump representa bem esse fenômeno na América também, mas como Andreazza aponta, o diferencial é que o bilionário contava com a máquina partidária, responsável por 40% dos eleitores. Com isso, ele conseguiu a façanha a de ser visto como um “outsider” contra o establishment, ao mesmo tempo em que tinha boa parte do establishment a seu favor. Em seguida, Andreazza leva a análise para o Brasil:
Mas: e Bolsonaro? A forma como sua resiliência se desdobra, ao longo já dos muitos meses em que sua pretensão presidencial está exposta aos adversários, e o modo como até aqui conseguiu — mesmo desprovido de lastro partidário — manter-se como um dos pauteiros do debate público são provas de antifragilidade e autorizam o crítico a sustentar que reúna, ou tenha exibido, mais genes de um corpo antifrágil do que Trump.
O verdadeiro teste para essa condição imune e mutante, contudo, ainda virá: a antifragilidade de Bolsonaro será posta em xeque quando a campanha eleitoral começar oficialmente e a máquina de moer do sistema acionar seus motores. Por exemplo: quando os mais de dez mil vereadores de PMDB e PSDB mobilizarem a musculatura desses tentáculos eleitorais — o próprio poder econômico — para defender o status quo político.
O tempo dirá se Bolsonaro tem mesmo condições de remar contra essa máquina de triturar, sem a devida base partidária por trás. Até porque, como aponta Andreazza, é o próprio establishment que melhor representa o conceito de antifrágil, sempre fazendo concessões e absorvendo choques externos para sobreviver e preservar seus privilégios e seu poder:
Não será o sistema político o antifrágil estrutural e soberano? Não será, mais uma vez a se manifestar na polarização controlada PT-PSDB? O que seria o decreto da intervenção federal no Rio de Janeiro senão a resposta, de natureza antifrágil, com que a máquina se recompõe depois de duas denúncias contra o presidente? Alguém dirá que Temer não saiu mais forte da crise? Para onde vai a voz do dinheiro — do mercado financeiro — de São Paulo senão para quem governa o estado há duas décadas? Essa é a antifragilidade sem face de que o antifrágil Bolsonaro é desafiante. Apenas um sobreviverá.
O texto de Gil Castello Branco, por sua vez, fala de fenômeno similar, buscando em Lampedusa a inspiração. O autor de O Gattopardo cunhou a famosa frase, na boca de um personagem, o Don Fabrizio: “Se quisermos que as coisas continuem como estão, as coisas precisam mudar”. É justamente a adaptação antifrágil do sistema, do “deep state”, do establishment.
Como Gil aponta, o grau de renovação política, por conta de todo o sentimento antipolítica hoje predominante nessa crise grave de representatividade, deveria ser muito alto, mas isso não deve ocorrer. São muitos políticos envolvidos em denúncias, e eles reagem, usam a máquina para garantir a impunidade, para se manter no poder, com seus privilégios. Gil explica o processo:
A Câmara dos Deputados, por incrível que possa parecer, terá um dos maiores índices de reeleição das últimas décadas, segundo o Departamento Intersindical de Assessoria Parlamentar (Diap). O índice de reeleição poderá chegar a 70%, por vários motivos. Como de cada três parlamentares um está sob suspeita no STF, o melhor caminho para a impunidade é renovar o mandato, manter o foro privilegiado e confiar que o corporativismo das Casas Legislativas prolongará a liberdade. Além disso, a redução do tempo de campanha, de 90 para 45 dias, e do tempo de propaganda eleitoral na televisão, de 45 para 35 minutos, favorecerá os mais conhecidos e com mandato. Ademais, para compensar o fim das doações empresariais foi criado o Fundo Eleitoral, que irá somar-se ao Fundo Partidário, totalizando cerca de R$ 2,5 bilhões que serão distribuídos, neste ano e em sua maior parte, para os grandes partidos.
Além da legislação eleitoral, os deputados e senadores têm ao seu favor, por quatro e oito anos respectivamente, verbas para alugar escritórios e veículos, combustível, telefone, divulgação do mandato parlamentar, monitoramento das redes sociais etc. Se não bastasse, os deputados podem ter até 25 servidores. No Senado o campeão na quantidade de subordinados é o senador João Alberto (MDB/MA), com 84 pessoas ao seu redor. Nesse jogo eleitoral desigual, a renovação é praticamente impossível e, quando acontece, não raro são eleitos filhos e cônjuges dos velhos caciques.
Na “República de Lampedusa”, tal como desejava Don Fabrizio, as mudanças são apenas para tudo continuar como está. Os que legislam se eternizam e indicam os que julgam. Estou a cada dia mais convencido de que tudo tem que mudar, para nada continuar como está.
O poder da máquina estatal é simplesmente brutal. Bolsonaro se apresenta como a alternativa, como aquele que pretende desafiar essa máquina, apesar de estar em seu sétimo mandato de deputado, com filhos também na política. Ainda assim, resta pouca dúvida de que seja um “outsider” de fato, por essa ótica de mudanças, e por isso desperta tanto medo na máquina. Será capaz de vence-la? E se vence-la, será capaz de derrota-la de dentro?
Tão importante quanto ter um presidente eleito que realmente signifique mudança, é ter mudanças efetivas no legislativo. Até porque, sozinho, um presidente não pode tanto assim. O grau de renovação tinha que ser muito maior na Câmara. Não há razão alguma para reeleger a imensa maioria dos que estão no poder. Infelizmente, não é a razão que fala mais alto na política. Os que já estão lá contam com muito poder para permanecer onde estão. Podem dar alguns anéis, mas pretendem preservar seus dedos.
Essa situação revoltante tem sido responsável pelo clima cada vez mais radical e revolucionário na população. Mesmo os normalmente moderados estão cansados e indignados, e querem, como Gil, mudar “tudo”, mas para “nada” continuar como está. Será possível fazer isso?
Rodrigo Constantino
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