Após meu texto sobre a PragerU processando a Google e o YouTube por censura de conteúdo, alguns leitores liberais e libertários questionaram se usar o estado para combater as empresas é o adequado, e se isso não fere os princípios do liberalismo. Boa questão.
Nós liberais somos avessos ao excesso de regulação, e julgamos que o estado deve se ater ao mínimo necessário para o bom funcionamento da sociedade, resguardando-se as liberdades individuais. Mas o liberal não precisa ser um libertário quase anarquista. E é sobre isso que quero falar.
O argumento básico libertário é o seguinte: o YouTube é uma empresa privada e tem o direito de exibir ou deixar de exibir o que ela quiser. Qualquer intervenção seria indevida, e antiliberal. Não podemos receber em nossa casa quem quisermos? Então o proprietário deve escolher o que ele quiser para sua empresa, e fim de papo.
Não creio ser tão simples assim. Em primeiro lugar, estabelecimentos voltados para clientes já não são como nossas casas, pois lidam com o público, não o privado. A propriedade é privada, mas o serviço é público. E isso demanda algumas restrições.
Alguém acha que um restaurante teria o direito, por exemplo, de recusar a entrada de um cliente por ele ser negro? Poderia colocar uma placa na porta impedindo a entrada de gays? Sei que os libertários acham que sim, pois descobriram sua “pedra filosofal”, o princípio de não-agressão, e como o dono do estabelecimento não está usando coerção, mas “apenas” decidindo quem pode ou não comer em seu restaurante, com o critério arbitrário que quiser, então tudo bem.
Mas liberais precisam endossar mesmo esse raciocínio? Sem abraçar esse dogma de forma fanática o sujeito deixa de ser um liberal, e passa a ser um socialista? Eu entendo os riscos de se abrir brechas, de permitir a entrada do cinza, mas o mundo não é preto ou branco o tempo todo. Por isso existem dilemas, e por isso os realistas sabem ceder, contemporizar, compreender que princípios muitas vezes entram em conflitos.
Agora vamos imaginar um exemplo diferente de um simples restaurante: uma grande via importante que foi privatizada, digamos a Turnpike aqui na Flórida, por onde milhões de carros trafegam diariamente. Ela pode escolher não permitir o tráfego de certos tipos de gente com base em conceitos arbitrários e preconceituosos? Imaginem uma placa dizendo que muçulmanos não podem circular pela via, e serão multados e expulsos se forem pegos. Liberal precisa aceitar isso?
Nem entro muito na questão legal, pois não sou especialista. Mas arrisco dizer que há um contrato entre empresa e cliente, e que se eu começo a ser censurado, tenho o direito de saber o motivo. Se for puro arbítrio, devo poder questionar isso na Justiça sim. Ou agora o proprietário pode simplesmente se negar a manter o contrato com base eu seu humor? Tem lá uma lista de restrições que você aceita quando cria sua conta. Se não ferir nada daquilo, a empresa pode mesmo assim te banir, do nada, porque não foi com a sua cara?
O que precisa ficar claro é que a Google não é uma simples loja ou restaurante. Alguns chegam a falar em “utilidade pública”. Ela tem mais poder hoje do que muito governo, mais informação do que a CIA. Ignorar isso tudo em nome de um princípio absoluto não parece muito razoável.
O que espanta em certos libertários é o grau de dogmatismo. Sequer admitem que possa existir o dilema. O assunto é debatido em vários sites liberais e conservadores, sem uma conclusão óbvia, justamente porque envolvem questões delicadas, o poder dessas empresas, maior do que muito estado, o grau de informação que possuem etc. Mas chega o libertário e diz: no seu blog você escreve o que quiser, logo a Google pode simplesmente cancelar seus vídeos, sem qualquer critério objetivo e fim de papo.
É por isso que libertários são insignificantes do ponto de vista político. Mais parece coisa de jovem encantado com a descoberta de alguma pedra filosofal que lhe dê conforto, pois com base nessa régua única ele tem as respostas para todas as questões complexas da vida em sociedade.
O argumento que muita gente usa, como já disse, é o de que essas empresas são como uma “public utility”. Podemos defender a privatização do saneamento básico, mas claro que terão regras. A empresa não poderá negar levar água e tratamento de esgoto para alguém por ser negro, ou judeu, ou conservador. Barry Goldwater, que era bem liberal em economia, aplaudiu o Sherman Act que quebrou monopólios em 1890. Podemos até discordar, mas daí a sequer reconhecer o dilema?!
Eis alguns textos contrários ou favoráveis a uma maior regulação dessas empresas: no NYT, o autor pergunta se é hora de quebrar em partes menores essas gigantes; na FoxNews, Tucker Carlson defende a regulação do estado usando o caso da demissão por critérios ideológicos; no TheHill, essa postura de Tucker é criticada; o Ayn Rand Institute também condena qualquer regulação; e Steve Bannon acha que Google e Facebook deveriam ser regulados como empresas de utilidade pública.
Particularmente, acho que ambos os lados apresentam argumentos razoáveis, e meu lado libertário tende a falar mais alto: prefiro sempre pecar por menos intervenção do que mais. Não é por isso, contudo, que vou tratar tema tão complexo e delicado de forma simplista e infantil, comparando a Google com minha casa ou um bar da esquina. Um mínimo de senso de proporção e pragmatismo se faz necessário para um debate sério.
Mesmo dito tudo isso, reparem que no meu texto eu elogio a medida de Prager por lançar luz sobre o problema do viés ideológico, ou seja, acho importante, na guerra cultural em curso, chamar a atenção para o tipo de boicote e censura que os conservadores têm sofrido, mostrar como as grandes plataformas estão filtrando conteúdo de acordo com sua visão política.
Rodrigo Constantino
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