“É preciso uma lei para impedir isso”. Esse tipo de comentário – e raciocínio – costuma ser muito mais frequente do que deveria. Não são poucas as pessoas que, diante de um problema, só conseguem enxergar leis e governo como solução. Para quem tem apenas um martelo, tudo se parece com prego.
Publiquei um texto hoje de Ricardo Bordin, condenando a decisão do MEC de impedir a criação de novos cursos de medicina. Há muitas faculdades caça-níqueis? Sem dúvida. Mas eis o típico comentário, que um leitor fez pensando por vários: “Não acho isto, precisamos primeiro ver como estão os cursos hoje”. Precisamos? Quem? Dá para confiar nos burocratas, fiscais do governo?
É a “falácia do Nirvana”: comparamos uma realidade imperfeita com uma utopia, uma idealização de como deveria ser o mundo, esquecendo que, na prática, teremos um exército de burocratas e políticos desviando o propósito daquele monte de leis que permitimos ou apoiamos.
Em sua coluna de hoje na Folha, João Pereira Coutinho fala justamente desse excesso de punição legal, tomando como base a decisão no Havaí de proibir o uso de celulares por transeuntes. Ou seja, caminhar e falar no celular, agora, será crime por lá, para se evitar acidentes.
Coutinho cita o filósofo Jonathan Jacobs para destacar duas ideias importantes: o número de condutas que merecem punição legal tem aumentado nos Estados Unidos de forma dramática; isso não torna uma sociedade mais virtuosa. Ao contrário.
O autor explica: “a obsessão do Estado em controlar todos os comportamentos dos cidadãos tem como resultado um enfraquecimento da responsabilidade moral e cívica dos mesmos. A lei deveria ser o último recurso —depois da educação, da ética, da negociação e do compromisso entre os indivíduos. É agora o primeiro recurso”.
Com base nessa tendência, Coutinho imagina alguns crimes do futuro, para nosso desespero, pois o que consideramos piada hoje pode perfeitamente se tornar a realidade de amanhã – e falo amanhã mesmo, sem qualquer exagero. Ele projeta: 1) “crime de imposição de gênero”, onde os “pais deverão abster-se de identificar o gênero dos filhos tomando como referência o sexo biológico dos mesmos”; 2) “crime de ódio privado”, em que bastará uma testemunha para punir aquele que expresse preconceitos mesmo em privado; 3) “crime de apropriação cultural”, proibindo os cidadãos de “se apropriem de práticas e temáticas de um grupo étnico a que não pertencem”; 4) “crime de envelhecimento público”, já que o avanço da medicina permite tratamentos e a “imposição da velhice à sociedade será equiparada a um ato obsceno”; 5) “crime de interesse sentimental não solicitado”, onde “será punido qualquer adulto que manifeste interesse sentimental não solicitado por outro adulto —através de sorriso, elogio, convite para jantar etc”.
A gente ri – por enquanto. Mas sabe que a insanidade, digo, a humanidade caminha mesmo nessa direção. Só acrescento que, se a coisa saiu de qualquer controle hoje, o fenômeno em si não é novo. Herbert Spencer já atacava o excesso de legislação em seu tempo. Cheguei a escrever um texto sobre isso há alguns anos:
O excesso de legislação
“O que sempre fez do Estado um verdadeiro inferno foram justamente as tentativas de torná-lo um paraíso.” (Hoelderlin)
Uma das características mais marcantes do mundo moderno é a crença na onisciência e clarividência do Estado. Este ente praticamente se transformou num Deus para muitos. E uma das consequências mais nefastas dessa mentalidade é o excesso de legislação, que asfixia a liberdade dos indivíduos. Em 1853, o filósofo Herbert Spencer escreveu um artigo, Over-Legislation, chamando a atenção para este lamentável fato. O que era um perigo já em seu tempo e na Inglaterra, tornou-se uma ameaça constante no mundo atual, principalmente no Brasil. Aqui, o governo cria infinitas leis sobre cada mínimo detalhe da vida cotidiana, transformando indivíduos em súditos.
Todos os dias as pessoas observam várias falhas nas ações governamentais e, não obstante, demandam sempre novos atos do governo e um time de burocratas para atingir os efeitos desejáveis. Repetem que falta apenas “vontade política”, e para cada novo fracasso do governo, mais governo é visto como necessário. Em nenhum outro campo a fé eterna e inabalável dos homens pode ser mais bem notada. A iniciativa privada tem sido responsável pelos grandes avanços da humanidade, pelo progresso na saúde, pelas técnicas de produção modernas que permitem mais conforto a todos, pelos revolucionários métodos de transporte, pelas inovações da informática e mais uma infinidade de coisas. No entanto, permanece em muitos uma grande desconfiança em relação ao setor privado e aos empresários que buscam lucros, enquanto o governo fica blindado e protegido de todas as desgraças que causa, sendo visto como panacéia pelos esperançosos. Eis que o caminho para o combate a todos os males é o governo, para estes crentes.
Uma coisa é garantir a cada indivíduo o direito de perseguir seu próprio bem; outra coisa bem diferente é perseguir este bem por ele. Se definirmos como o principal dever do Estado a proteção de cada indivíduo contra os demais, então todas as outras ações estatais entram na definição de proteger o indivíduo contra si mesmo – contra sua estupidez, preguiça, irresponsabilidade, incapacidade etc. Trata-se de uma postura arrogante e ingênua. A proposição que os advogados de muito governo precisam aceitar é que, as coisas que as pessoas não serão capazes de obter por conta própria, serão oferecidas por uma parte do povo apontada pela lei. Os funcionários públicos amam seus vizinhos mais que eles mesmos! A filantropia dos burocratas é mais forte que o egoísmo dos cidadãos!
Esta fé tola no governo gera uma quantidade absurda de leis, regulando sobre tudo da esfera privada. Mas estes atos do governo não apenas falham; eles costumam piorar a situação. Como Spencer reconhece, milhares de famílias foram arruinadas pelos efeitos dos esforços legislativos para oferecer mais segurança material a elas. Poucas pessoas conseguem enxergar com clareza a ligação causal dessas medidas e dos fracassos que se seguem no decorrer do tempo. A miopia dos leigos faz com que apenas os efeitos de curto prazo sejam notados, ignorando-se as conseqüências negativas no longo prazo. O organismo social é complexo, e cada parte afeta a outra, muitas vezes de forma imprevisível. Nos esforços de curar males específicos, os legisladores causaram continuamente males colaterais que eles não esperavam.
Na iniciativa privada, aqueles que são mais competentes costumam obter sucesso, enquanto os incompetentes acabam ficando para trás. Nas organizações estatais isto não é verdade. As empresas privadas precisam alterar seu curso rapidamente se emergências surgem. Mas o setor público vive da rotina e da hierarquia, com os privilégios que lhes são garantidos. A vitalidade do setor privado advém da livre competição, enquanto as agências estatais sucumbem com freqüência à inércia. Quando a conexão entre o lucro obtido e o trabalho executado é destruída, a eficiência quase sempre é deixada de lado. Além disso, a corrupção é um resultado praticamente inevitável do modelo estatal de gestão.
Na maioria dos casos apontados como falhas do funcionamento da livre iniciativa, a aparente falta do setor privado é um resultado das interferências prévias do governo. Por um problema gerado pelo próprio governo, mais governo é a solução oferecida. Querem que sanguessugas curem a leucemia! Como um alquimista que atribui suas constantes decepções a alguma desproporção nos ingredientes, alguma impureza ou temperatura aplicada, e nunca à futilidade do processo ou impossibilidade de sua meta; todo fracasso das legislações do governo são explicadas, pelo crente do Deus Estado, como sendo culpa de algum detalhe qualquer, da falta de vontade dos políticos envolvidos, da ganância de alguns homens. Todas as superstições demoram a morrer, e Spencer temia que esta crença na onipotência do governo não seria uma exceção. Ele estava certo, infelizmente.
E no Brasil, mais do que em muitos outros países, sabemos disso muito bem. As leis brasileiras, incontáveis, tratam até da forma pela qual o pão será vendido! Temos um excesso incrível de legislação, incluindo uma enxurrada de medidas “provisórias” dignas de uma ditadura *, fruto da mentalidade de que o governo é um ente perfeito, uma espécie de Deus. Todos os fracassos diários deste ente “maravilhoso” não foram suficientes para abalar a fé dos crentes. Para estes, se ao menos tivéssemos um pouco mais de governo para resolver os nossos males, viveríamos num paraíso! O que importa a experiência mostrar que o inferno é gerado justamente pelo excesso de legislação? Quando os fatos vão contra a fé, os crentes simplesmente os ignoram. E eis o motivo de tanta gente demandar mais governo nesse país.
Pois é. E eis um detalhe interessante: temos o avanço desse nanny state concomitantemente ao crescimento dos “direitos” e das “liberdades” individuais. Ou seja, na era do “sexo livre”, do “vale tudo” e da libertinagem confundida com liberdade, eis que temos mais e mais leis, mais e mais governo controlando cada passo de nossas vidas. Estranho? Paradoxal? Apenas para quem não assimilou o alerta de Edmund Burke:
A sociedade não pode existir, a menos que um poder que controle a vontade e o apetite seja colocado em algum lugar, e quanto menos exista interiormente, mais dele existirá exteriormente. Está ordenado na constituição eterna das coisas, que homens de mentes intemperantes não podem ser livres. Suas paixões forjam seus próprios grilhões.
Uma sociedade de “adultescentes”, de crianças mimadas que confundem desejos com direitos, de “libertários” que só querem saber de satisfazer suas vontades e dane-se o entorno, de “progressistas” que vendem relativismo moral, teremos cada vez mais controle estatal em nossas vidas. É porque o controle moral já desapareceu por completo…
Rodrigo Constantino
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