As eleições recentes para o Parlamento Europeu mostraram o avanço de lados mais extremistas e a asfixia do centro. O maior fenômeno foi liderado, sem dúvida, por Nigel Farage, o fundador do Ukip e principal defensor do Brexit, que ameaça a histórica dominância dos partidos Conservador e Trabalhista.
A tentação da mídia é pintá-lo como um populista radical, mas os rótulos impedem uma análise mais séria do fenômeno. Resenhei neste espaço um livro sobre o nacional-populismo de acadêmicos que levam a sério o grito dessa classe média, justamente por entenderem que há ali muita demanda legítima.
O centro se mostrou incapaz de defender um modelo unificador decente, que respeite a soberania nacional dos países. No afã de se criar os “Estados Unidos da Europa”, políticos e burocratas se uniram em prol de um projeto comum, deixando de lado a vontade popular em cada nação.
A crescente burocracia e as decisões tomadas de cima para baixo, por um distante Parlamento em Bruxelas, especialmente sobre o delicado tema migratório, foram minando a confiança dos eleitores nesses “poderosos sem votos”. Essa gente não reconhece nesses políticos uma representação legítima, e pretende resgatar o direito de cada país definir suas políticas econômicas e de segurança.
Sempre que o poder se concentra, a população acaba dividida em facções. Os “pais fundadores” da América sabiam disso, e desenharam mecanismos de pesos e contrapesos para conter ambição com ambição. Sabiam, também, da importância de um sentimento patriótico comum, de uma moral razoavelmente disseminada e de um tecido social que unisse o povo. O federalismo, com mais poder aos estados, mais próximos do povo, era parte desse instrumento.
Mesmo assim, com o governo federal formado de cima para baixo, o crescimento de seu poder tem feito até a América ver o avanço das disputas de facções e uma polarização acentuada. Imagine na Europa, cuja união foi formada de cima para baixo, e onde poucos se enxergam como europeus, enquanto a maioria ainda se vê como alemão, italiano, francês ou espanhol.
É nesse contexto, de forma bem resumida, que cada vez mais gente se revolta contra a União Europeia. Como Hélio Beltrão constatou em artigo sobre a eleição, “desde 1999, Farage é membro do Parlamento Europeu, onde se tornou um dos oradores mais influentes, enfurecendo seus colegas com discursos ácidos e críticos à UE e à crescente centralização política no nível supranacional”. Eis o cerne da questão por trás de seu avanço.
O Partido do Brexit de Farage obteve 31% dos votos britânicos e se tornou o maior partido nacional no Parlamento Europeu, com 29 membros. Em contraste, o Partido Trabalhista do socialista Jeremy Corbyn obteve 14% dos votos, e o Partido Conservador de Theresa May, pífios 9%. Uma punição merecida e previsível pela incompetência em administrar a saída da UE após a vitória do Brexit, pois no fundo o establishment conservador queria permanecer.
O professor português João Carlos Espada explicou o fenômeno em coluna recente: “Estamos a assistir há vários anos a uma espécie de rebelião dos eleitorados nacionais de inúmeros países europeus – uns atrás dos outros, é a expressão adequada neste caso. Essa rebelião exprime-se na fuga de um número crescente de eleitores dos partidos centrais clássicos para partidos até há pouco marginais, nalguns casos até há pouco simplesmente inexistentes”.
Para Espada, é um erro julgar que os eleitores votam nesses partidos porque são extremistas. O motivo é outro, mais nobre e legítimo: “Estão a votar nesses partidos porque eles são os únicos que dão voz a uma preocupação crescente dos eleitores: a preocupação com o sentimento nacional e o desconforto com a centralização supranacional”. Enquanto isso, os partidos tradicionais são seduzidos pela ideia da planificação central.
O sonho europeu de maior cooperação é belo e louvável, ainda mais levando-se em conta as guerras que destroçaram o continente. Mas uma coisa é maior cooperação, e outra, bem diferente, é um modelo um tanto soviético de centralismo. Muitos dos “pais fundadores” da União Europeia compartilhavam dessa visão equivocada de mundo. Ocorreu, desde então, uma espécie de uniformização que praticamente impõe essa única visão como a aceitável, tratando com desprezo qualquer ponto de vista divergente. Quem rejeita o modelo centralizador só pode ser um alienado, um ressentido com a globalização, um xenófobo. Assim os políticos tradicionais e a mídia mainstream os tratam.
O professor Espada comenta: “A ideia e o slogan de ‘mais Europa’ tornou-se comum aos partidos centrais, de centro-direita e de centro-esquerda. Fundamentalmente por essa razão, os eleitores que não querem ‘mais Europa’ deslocam-se para partidos marginais – ou/e para a abstenção. Como venho alertando há vários anos, a uniforme identificação da União Europeia com o plano central de ‘mais Europa’ arrisca-se seriamente a resultar em ‘mais Europa com menos europeus’.”
Esses partidos que dominavam a política estão sendo punidos por ignorar a voz de boa parte da população. Se acreditam numa União Europeia mesmo, precisam escutar esses eleitores incomodados. Isso “exige que aceitem uma humilde atitude de compromisso e moderação relativamente ao desconforto dos eleitores”. É isso, buscando uma adaptação ao que vem dando errado, ou ver os “radicais” nacionalistas crescendo cada vez mais.
Se a elite “progressista” cosmopolita continuar confundindo globalização (livre comércio) com globalismo (comércio regulado de cima para baixo), achando que o conceito de Estado-nação está morto e que somos todos “cidadãos do mundo”, e tratando os insatisfeitos como uma cambada de ignorantes preconceituosos, a reação será cada vez mais forte. O filósofo Roger Scruton, um dos mais refinados da atualidade, resgatou o conceito grego de “oikofilia”, ou “amor ao lar”, para defender o Brexit. Recusar-se a ouvir esse brado retumbante será o suicídio definitivo do centro político europeu. O furação Farage é o último alerta.
Artigo originalmente publicado na Gazeta impressa
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