Após sentir na própria pele o calor equivalente a quase 50 graus no Rio (sensação térmica), duas coisas vieram à mente: Carrier deveria ser canonizado, e Montesquieu tinha um ponto quando falava da influência do clima na cultura de um povo.
Tentei imaginar um típico carioca hoje, sob o sol escaldante, refletindo sobre Nietzsche ou Schopenhauer, e a cena não se sustentava. O que vinha em seu lugar era sempre a imagem de um Homer Simpson da vida, dizendo: “Não enche o saco e me dá logo outra cerveja”.
É duro cobrar reflexões mais profundas em meio a esse calor ridículo digno de um deserto árido. Mas, como o outro pensamento que veio à tona foi justamente a invenção do ar condicionado, podemos constatar que o clima, ainda que possa influenciar, não determina a cultura. O progresso tecnológico pode superar tais barreiras naturais. Com base nisso, segue um texto meu sobre o instigante tema:
O impacto do clima na cultura
“A pátria do capital não é o clima tropical com sua vegetação exuberante, mas a zona temperada.” (Karl Marx)
Não acredito em determinismo de nenhum tipo, seja genético, social, climático ou histórico. Nenhuma força exógena ao homem determina seu destino. Como disse Viktor Frankl, “entre o estímulo e a resposta, o homem tem a liberdade de escolha”. É a crença no livre-arbítrio humano, da qual compartilho.
Mas isso não quer dizer, naturalmente, que o homem não sofra influências que podem contribuir muito para suas escolhas e, portanto, trajetória. Nesse contexto, o clima sempre foi bastante citado como fator relevante para a formação de diferentes culturas. A natureza contribui – para o bem ou para o mal – na moldagem da mentalidade predominante de um povo.
O filósofo Bentham, por exemplo, disse que “entre as circunstâncias externas pelas quais a influência da educação é modificada, as principais são aquelas agrupadas sob a rubrica do clima”. Ele acrescentou: “Nos climas quentes, a saúde do homem tende a ser mais precária que nos frios; sua força e rijeza, menor; seu vigor, firmeza e constância mental, menor; e portanto, indiretamente, sua quantidade de conhecimento é também menor. O pendor de suas inclinações é diferente, e isso de modo mais notável no tocante à sua maior propensão para os prazeres do sexo e à precocidade da etapa da vida em que essa propensão começa a se manifestar: suas sensibilidades de todos os tipos são mais intensas; suas ocupações habituais mais para a lassidão que para a atividade; a constituição básica de seu corpo é, provavelmente, menos forte e menos rija; a constituição básica de sua mente é menos vigorosa, menos firme e menos constante”.
Vários outros pensadores depositaram no clima uma importância elevada na formação cultural de um povo. Montesquieu, por exemplo, disse que “nos países frios há menor sensibilidade aos prazeres; nos temperados, ela é um pouco maior, e, nos países quentes, ela é extrema”. Ele disse ainda: “O calor do clima pode ser tão excessivo que o corpo perde todo o vigor. A prostração alcança, dessa maneira, até mesmo o espírito: nenhuma curiosidade ou nobreza de propósito, nenhum sentimento generoso. Todas as inclinações se tornam passivas, e a preguiça se confunde com a felicidade”.
Kant foi bastante direto também: “A excelência das criaturas pensantes, sua rapidez de apreensão, a clareza e a vivacidade dos seus conceitos, os quais chegam a elas pelas impressões do mundo externo, a capacidade de combinar esses conceitos e, em suma, toda a extensão da sua perfeição tornam-se mais altas e mais completas na proporção direta da distância do seu lugar de moradia até o Sol”.
David Hume também responsabilizou o clima pela situação nos trópicos: “Por que razão as pessoas que vivem entre os trópicos ainda não conseguiram desenvolver nenhuma arte ou civilidade, nem aprimorar política alguma em seu governo, nem disciplina militar alguma, enquanto poucas nações nos climas temperados se viram privadas desses benefícios? É provável que uma causa desse fenômeno seja o calor e a constância do clima na zona tórrida, que tornam menos necessárias para os seus habitantes as roupas e as casas, e assim eliminam, em parte, aquela necessidade que é sempre o maior estímulo ao trabalho e à invenção”.
John Stuart Mill, ao constatar que as nações detentoras do melhor clima e do melhor solo não têm sido as mais ricas ou as mais poderosas, também apelou ao clima como justificativa: “A vida humana nessas nações pode ser mantida com tão pouco que os pobres raramente sofrem de ansiedade, e, nos climas onde o mero existir é um prazer, o luxo que eles preferem é o do repouso. Energia, sob o apelo da paixão, eles a possuem em abundância, mas não aquela que se manifesta no trabalho contínuo e perseverante. E, como eles raramente se preocupam o bastante com objetivos remotos para estabelecer boas instituições políticas, os incentivos à industriosidade são ainda mais enfraquecidos pela proteção imperfeita dos seus frutos”.
Malthus acreditava que “o selvagem dormiria para sempre sob sua árvore se não fosse arrancado do seu torpor pelo ardume da fome ou pelo incômodo do frio”. Ele escreveu: “Naqueles países onde a natureza é mais redundante na produção espontânea, não encontramos habitantes que se notabilizem pela agudez de intelecto. A necessidade foi chamada, com muita verdade, de a mãe da invenção”.
Thomas de Quincey disse: “Ao cooperar, por meio das tentações que oferece, com o langor luxuriante dos nativos, o clima se torna uma maldição desabilitadora dos melhores instintos da população”. Emerson também aderiu a esta explicação: “O solo difícil e os quatro meses de neve tornam o habitante da zona temperada do norte mais sábio e mais capaz que o seu par abençoado pelo perpétuo sorriso dos trópicos”. Alfred Marshall foi mais um nessa linha: “Um clima quente prejudica o vigor. Ele não é de todo hostil ao trabalho intelectual e artístico superior, mas impede as pessoas de se tornarem aptas a suportar um esforço muito intenso de qualquer tipo por maior tempo”.
Em resumo, vários pensadores depositaram no clima certa responsabilidade pela maior indolência, preguiça ou passividade observada nos trópicos. A necessidade de conviver num ambiente natural mais hostil pode ter colaborado para que os povos do norte desenvolvessem maiores aptidões para a produção. No Brasil, um pobre com poucos recursos consegue não apenas sobreviver, como pode também desfrutar de um lazer gratuito como a praia. Nos países escandinavos, a probabilidade de esse mesmo pobre morrer de frio é bem maior. Fora isso, o clima tropical sem dúvida é mais propenso a manter uma população sem grandes ambições, numa condição de quase completo dolce far niente. É uma espécie de convite tentador ao hedonismo, ao carpe diem.
Mas nada disso é uma imposição inexorável. A Austrália é um bom exemplo para provar que é possível um povo prosperar num clima tropical. O clima tropical pode ser uma barreira ao progresso capitalista, mas não é um obstáculo intransponível de forma alguma. Roberto Campos afirmou: “Os que crêem que a culpa de nossos males está em nossas estrelas e não em nós mesmos ficam perdidos quando as nuvens encobrem o céu”. Ele estava certo.
A responsabilidade pelo atraso cultural brasileiro, pelo nosso “jeitinho”, pela mentalidade que enaltece a “Lei de Gérson”, não pode ser jogada nos ombros dos “loiros de olhos azuis”. Ela é somente dos próprios brasileiros. Afinal, podemos mudar para melhor, independente do clima. A receita foi dada pelo colega de Campos, Eugênio Gudin: “Os países da América Latina não precisam criar uma civilização. Ela já foi criada pela Europa nos últimos quatro séculos. Cabe-nos assimilar essa civilização”.
Agora, se me dão licença, vou ler um pouco de filosofia. Boa praia a todos!
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