“A verdadeira liberdade ocorre quando os homens, nascidos livres, precisando dirigir-se ao público, podem falar livremente.” (Eurípides)
John Milton nasceu em 1608 e foi um dos maiores poetas renascentistas da Inglaterra, tendo dedicado sua vida à defesa das liberdades civis, políticas e religiosas. Tornou-se um dos principais propagandistas do regime republicano durante os conturbados anos que seguiram a execução do rei Carlos I, em 1649. Os acontecimentos que levaram a este ato, o ato em si e suas conseqüências iriam dominar seus escritos políticos. Sua defesa radical justificando o regicídio no texto A Tenência de Reis e Magistrados foi um marco na época. Em Defesa do Povo Inglês, Milton faz ataques violentos aos defensores do rei assassinado, assim como apresenta mais argumentos para defender a República perante a Europa. Sua obra mais celebrada pelos liberais é Areopagitica, um discurso condenando a censura na imprensa.
Logo no começo de A Tenência de Reis e Magistrados, John Milton deixa claro seu apreço pela idéia de direito natural, quando afirma que “só os homens de bem podem amar vigorosamente a liberdade; os demais amam, não a liberdade, mas a licença”. Para ele, o homem já nasce livre. Ninguém deve sua liberdade à licença de algum governante. Sua idéia acerca da formação do Estado antecipa John Locke, quando ele diz que os homens ”concordaram por aliança comum em obrigar-se uns aos outros contra a agressão recíproca, e a se defender em conjunto de qualquer um que perturbasse ou se opusesse a tal acordo”.
Por isso teriam surgido as vilas, cidades e repúblicas. Pelo fato de a boa-fé de cada um não ser suficiente para garantir a paz e a liberdade, os homens teriam “julgado necessário dispor de alguma autoridade que pudesse refrear pela força e pela punição toda violação da paz e do direito comum”. Mas ninguém iria confiar no poder arbitrário dos governantes. Para tanto, criam-se as leis, que devem inclusive “confinar e limitar a autoridade dos que eles escolheram para governá-los”. As fraquezas e os erros pessoais seriam, tanto quanto possível, protegidos pelo governo das leis, igualmente válidas para todos, sem exceção.
Essas leis, todo o direito, brotam da fonte da justiça, e não o contrário, ou seja, não é uma lei que determina se algo é justo ou não. Existem leis ilegítimas, que ferem esses direitos naturais. Essa visão teria influência nos “pais fundadores”, como se pode notar pela citação de Thomas Jefferson: “Se uma lei é injusta, um homem está não apenas certo em desobedecê-la, ele é obrigado a fazê-lo”. Quem discorda, deveria questionar se um guarda estaria sendo justo ao seguir as leis nazistas num campo de concentração!
Nem mesmo o rei escaparia dessa igualdade perante a justiça e as leis. Para Milton, “considerar os reis responsáveis unicamente perante Deus constitui subversão de toda a lei e de todo governo”, lembrando que muitos na época defendiam a idéia de direito divino aos reis. A autoridade do rei, para Milton, advinha do próprio povo, e isso garantia ao povo o direito de rejeitá-lo quantas vezes quisesse. Ele condenava a analogia entre rei e pai, afirmando que são coisas bem diferentes, pois pai é quem nos criou, enquanto o rei não nos criou, mas ao contrário, foi criado por nós. “O povo não existe por causa do rei, mas o rei existe por causa do povo”, ele sintetiza.
Milton afirma que “o poder real nada mais é senão um pacto ou estipulação mútua entre o rei e o povo”. E se uma das partes não honrar o pacto, no caso o rei tornar-se um tirano, o acordo não é mais válido. Neste caso, o republicano Milton defendia um julgamento honesto e aberto, “para ensinar os monarcas fora-da-lei e todos os que tanto os adoram que a única e verdadeira majestade soberana e suprema sobre a Terra não é um homem mortal nem sua vontade imperiosa, mas a justiça”. Em resumo, “a justiça infligida ao tirano nada mais é senão a defesa necessária de toda uma república”.
John Milton, que era um cristão protestante, defendia a liberdade religiosa também, e não deixa de mandar um duro recado aos clérigos: “Não perturbem os negócios civis, que se encontram em mãos mais hábeis e capazes de administrá-los; estudem mais e dediquem-se ao ofício de bons pastores”. Para ele, a magistratura e a Igreja confundiam os deveres uma da outra. Por este motivo, entre outros, John Milton não suportava o papismo de modo algum. Em sua opinião, não se tratava de uma religião, mas de “uma tirania clerical disfarçada de religião, adornada de todos os emolumentos do poder civil que ela tomou para si contrariamente ao ensinamento do próprio Cristo”.
Em Areopagítica, seu discurso pela liberdade de imprensa ao Parlamento, Milton iria apresentar argumentos liberais contra a censura prévia. Publicada em 1644, a obra-prima do poeta seria escrita no contexto de batalha parlamentar, já que o líder da Assembléia, Herbert Palmer, havia exigido que um livro de Milton em defesa do direito de divórcio fosse queimado. Para Milton, a censura sempre esteve associada à tirania, e mais recentemente seria fruto do reacionarismo católico do Concílio de Trento e da Inquisição. Ele foi direto ao afirmar que o “projeto de censura surgiu sub-repticiamente da Inquisição”.
Milton defendia que cada um pudesse julgar por conta própria o que é bom ou ruim. “Todo homem maduro pode e deve exercer seu próprio critério”, ele escreveu. Ele diz ainda: “O conhecimento não pode corromper, nem, por conseguinte, os livros, se a vontade e a consciência não se corromperem”. Para ele, todas as opiniões são de grande serviço e ajuda na obtenção da verdade. Os homens não devem, portanto, ser tratados como idiotas que necessitam da tutela de alguém. Desconfiar das pessoas comuns, censurando sua leitura, “corresponde a passar-lhes um atestado de ignomínia”, considerando que elas seriam tão debilitadas que “não seriam capazes de engolir o que quer que fosse a não ser pelo tubo de um censor”. Para Milton, ao contrário, cada um tem a razão, e isso significa a liberdade de escolher. O desejo de aprender necessita da discussão, da troca de opiniões. A censura, então, “obstrui e retarda a importação da nossa mais rica mercadoria, a verdade”.
Quanta diferença para a postura típica dos autoritários, como fica evidente na seguinte declaração de Trotsky: “Os jornais são armas. Eis porque é necessário proibir a circulação de jornais burgueses. É uma medida de legítima defesa!”. Seu colega revolucionário, Lênin, foi na mesma linha: “Por que deveríamos aceitar a liberdade de expressão e de imprensa? Por que deveria um governo, que está fazendo o que acredita estar certo, permitir que o critiquem? Ele não aceitaria a oposição de armas letais. Mas idéias são muito mais fatais que armas”. Fica evidente o abismo existente entre esta visão de mundo, que pariu a União Soviética, e aquela de Milton, que influenciou a criação dos Estados Unidos, como se pode verificar pela afirmação de Thomas Jefferson: “Uma vez que a base de nosso governo é a opinião do povo, nosso primeiro objetivo deveria ser mantê-la intacta. E, se coubesse a mim decidir se precisamos de um governo sem imprensa ou de uma imprensa sem governo, eu não hesitaria um momento em escolher a segunda situação”.
Além disso, o argumento de Milton mostra como a censura, na prática, seria ineficaz ou mesmo prejudicial ao seu intento original. Os censores, afinal, são humanos que erram também. Ele questiona como confiar nos censores, já que não são detentores da graça da infalibilidade e da incorruptibilidade. A censura não consegue levar ao resultado para o qual foi concebida. Ele diz: “Aqueles que imaginam suprimir o pecado suprimindo a matéria do pecado são observadores medíocres da natureza humana”. A reforma dos costumes imposta não surte o efeito desejado, como Milton demonstra através dos exemplos da Itália e Espanha “depois que o rigor da Inquisição se abateu sobre os livros”. É impossível tornar as pessoas virtuosas pela coerção externa, e a censura impede que se exerça a faculdade do juízo e da escolha.
Uma das frases mais famosas de John Milton saiu justamente de Areopagítica, e é citada aqui para concluir o resumo do seu legado: “Dai-me liberdade para saber, para falar e para discutir livremente, de acordo com a consciência, acima de todas as liberdades”.
Texto de “Uma luz na escuridão“.
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