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O milagre econômico

“As condições físicas abrem possibilidades, erigem obstáculos, mas não criam civilizações, que são puro produto do espírito.” (Pierre Gourou)

Alain Peyrefitte foi ministro de vários governos franceses no pós-guerra, diplomata e deputado, além de membro da Academia Francesa. Ele escreveu vários livros, entre eles Os “Milagres” na Economia, notas de aulas pronunciadas em 1994 no Collège de France, onde procura analisar as principais causas do desenvolvimento econômico. Peyrefitte começa logo reconhecendo a dificuldade da etologia, por conta de sua incômoda situação de abordar toda espécie de campos de pesquisa sem ser especialista em nenhum deles. No entanto, há o risco oposto de quem foca demais nas árvores e não consegue enxergar a floresta.

Um dos primeiros obstáculos na análise do desenvolvimento surge na dificuldade de se reconhecer uma diferença de capacidades, ainda que seja estritamente cultural. Conforme diz Peyrefitte, “admitir que nossos atrasos ou nossos fracassos têm a ver com o que temos de mais íntimo, nossa educação, nossas influências mentais, o que recebemos dos nossos, de nossos pais, de nosso grupo, é humilhante”. O mea culpa honesto não é tarefa trivial, e afasta muitos da sincera busca da verdade. “Para um país subdesenvolvido”, continua o autor, “é mais reconfortante culpar a natureza do solo, ou o regime dos ventos, ou o imperialismo colonialista, ou o do Fundo Monetário Internacional”. Em resumo, parece mais confortável explicar o avanço ou atraso do desenvolvimento pela geografia do que pelas mentalidades. Mas isso não quer dizer que seja mais correto.

O materialismo histórico ignora totalmente este fator fundamental. Na prática, profundas resistências mentais tornaram ineficaz, ou até negativa, a transferência de técnicas de produção e gestão para países pobres. Peyrefitte entende que, “da mesma forma que não se muda uma sociedade por decreto, não se faz ‘decolar’ uma economia, impondo-lhe um modelo copiado do exterior”. O desenvolvimento não é facilmente reproduzido, como a experiência atesta. É preciso, portanto, descobrir o segredo de sua força desencadeadora. Para Peyrefitte, esse segredo encontra-se em uma mentalidade favorável à economia. A democracia, por exemplo, não se limita a instituições, mas exige um espírito público apto a fazê-las valer. O fator cultural, em outras palavras, é determinante na influência do atraso ou progresso econômico. Peyrefitte admite que “seria inútil isolar um fator pretendendo que ele explicasse tudo”. “Mas parece útil”, ele diz, “entre os numerosos fatores da evolução, sublinhar a importância daquilo que nosso materialismo ingênuo negligencia: o comportamento humano”.

Objetivando, antes de tudo, identificar uma economia não-desenvolvida, Peyrefitte estabelece alguns traços predominantes: é uma sociedade imóvel (a mobilidade social e profissional é suspeita ou mesmo proibida); uma sociedade hostil à inovação (a novidade é sentida como uma desordem); uma sociedade fragmentada (o grau de heterogeneidade impede o estabelecimento de uma verdadeira economia de trocas); uma sociedade intolerante (exerce forte censura sobre seus membros e a autonomia intelectual é considerada uma ameaça); uma sociedade obscurantista (a difusão do livro e da imprensa é reservada à camada favorecida); uma sociedade sob tutela (comandada por feudos que controlam as atividades sociais, com uma casta no poder que “sabe” melhor que os indivíduos o que lhes deve ser conveniente); uma sociedade dominada (a produção das riquezas está nas mãos dos detentores do poder político); uma sociedade de saúde precária (uma mortalidade elevada é aceita com fatalismo); uma sociedade supernatalista (a mortalidade infantil é compensada por uma fecundidade irresponsável); uma sociedade de penúria (grande proporção não dispõe de um mínimo vital e não está ao abrigo da miséria e da fome); e uma sociedade fechada (a recusa das trocas condena a sociedade ao recuo e à xenofobia). Claro que uma sociedade desenvolvida seria o contrário disso tudo.

Peyrefitte deposita enorme relevância no conjunto das disposições mentais, o fator imaterial que foi negligenciado por diversos economistas, como Keynes e Marx. “O ambiente cultural forma um húmus sobre o qual algumas plantas podem crescer, enquanto que outras ressecam”. Falando para seus concidadãos franceses, que muitas vezes alimentam um profundo ressentimento em relação aos ingleses, Peyrefitte vai direto ao ponto: “Repugna-nos admitir que se a Grã-Bretanha industrializou-se primeiro, não foi essencialmente porque ela possuía carvão – como muitos outros países – mas porque encontravam-se, ali, mais que alhures, pioneiros capazes de utilizar seu carvão”. Como muito bem colocou Pierre Gourou, autor de A África Tropical, “a noção de que tudo é fatalidade está destinada às inteligências inferiores”. O fatalismo conforta, mas engana também, pois é falso.

Outro aspecto importante do desenvolvimento lembrado por Peyrefitte é sua raridade na história da humanidade. Muitos, especialmente os que vivem nos países desenvolvidos, tomam como certo o desenvolvimento, não como exceção, e defendem direitos com base nisso. No entanto, é preciso admitir o fato de que “o desenvolvimento é um gênero histórico raro”, e que certas condições culturais lhe são indispensáveis, mas não são facilmente reunidas. Peyrefitte diz: “O que hoje chamamos de subdesenvolvimento, esquecemos que é o estado natural da humanidade, desde a origem”. Há apenas dois séculos, por exemplo, metade das crianças morria antes da puberdade. Com isso em mente que Peyrefitte utiliza o termo “milagre” para falar do desenvolvimento.

O livro trata de alguns casos particulares de desenvolvimento, sempre através da abordagem que foca na conduta humana como diferencial. O caso alemão, por exemplo, deixa evidente aquilo que Peyrefitte considera como as causas morais do “milagre” econômico: “vontade obstinada de sair da miséria e da derrota, espírito de iniciativa, convicção de que o restabelecimento se dará no campo econômico, o papel do político limitando-se a uma simples regulação”. Há mesmo um milagre, no sentido que as causas naturais não bastam para explicar o avanço de uns e o naufrágio de outros. No campo da religião, milagre está associado à fé. Para Peyrefitte, a metáfora é válida para a ordem dos fatos econômicos e sociais, trocando-se fé por confiança. Peyrefitte conclui: “Fé e confiança são os pares, religioso e laico, da mesma raiz”. Para um povo experimentar o “milagre” econômico, é preciso ter confiança na confiança.

Texto presente em “Uma luz na escuridão”, minha coletânea de resenhas de 2008.

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