“O vício intrínseco do capitalismo é a partilha desigual do sucesso; o vício intrínseco do socialismo é a partilha eqüitativa do fracasso.” (Winston Churchill)
Por que o capitalismo funcionou no Ocidente e falhou no Terceiro Mundo? Quais seriam as principais causas do enorme sucesso relativo do Ocidente? Por que uma proporção gigantesca da população mundial se encontra na ilegalidade, fora das regras do jogo? Por que alguns países possuem vasta riqueza natural mas não conseguem gerar capital? Essas seriam as perguntas básicas que o excelente livro de Hernando de Soto, O Mistério do Capital, tenta responder. O autor e sua equipe realizaram anos de pesquisas em diversos países, e chegaram a conclusões interessantes.
Em uma sentença bastante resumida, o sucesso relativo estaria atrelado ao sistema de representatividade dos ativos dos cidadãos. O que cria capital, possibilitando avanços sociais, econômicos e culturais, não são os bens físicos em si, mas como estes são utilizados. Como os direitos à propriedade dos bens são definidos torna-se fundamental para o progresso. Um modelo simplificado, aceito pela maioria, numa espécie de “contrato social” obtido naturalmente, e não imposto por uma minoria, possibilita esta transformação de ativos físicos em capital.
As dificuldades que o Terceiro Mundo encontra hoje para integrar seus setores ilegais à formalidade são similares ao que viveu o Ocidente no século XIX. É crucial para se construir esta ponte que as elites e os governos compreendam que as leis devem ser criadas de baixo para cima, ou seja, precisam atender às realidades do povo. Não adianta colocar em papel coisas que ninguém irá seguir. A grande maioria das pessoas prefere seguir na legalidade, mas estará sempre comparando as vantagens e desvantagens disso. Quando os custos de permanecer na legalidade ultrapassarem os benefícios, um novo contrato social será estabelecido naturalmente em diversas localidades, fugindo assim das regras estabelecidas. Isto inviabiliza um grande contrato social nacional, fundamental para que todos sigam as mesmas regras. Isto acaba colocando à margem do sistema bilhões em ativos mortos, dinheiro que não consegue se transformar em capital.
Segundo estimativas do autor, 67% da população das Filipinas vivem em propriedades fora do regime legal, ou 81% no Peru, 83% no Egito, e por aí vai. Pelos cálculos de sua equipe, existem cerca de US$ 9,3 trilhões em propriedades ilegais no Terceiro Mundo, ativos impossibilitados de se transformar em capital. Para se compreender a gravidade disso, basta mencionar que a principal fonte de financiamento para empreendimentos nos Estados Unidos são justamente as hipotecas, cuja garantia é o direito de propriedade destes ativos. Uma residência americana é capital, enquanto que uma casa na favela é um ativo morto. A diferença está no sistema formal de propriedade, no império das leis. Nos Estados Unidos, por exemplo, menos de 3% da população se encontra no campo, e existem poucos latifúndios, mas a produção agrícola é uma das maiores do mundo. Isso é possível pois as propriedades rurais médias conseguem ter acesso ao capital, através de financiamentos. No Brasil, uma fazenda de médio porte não consegue se alavancar, não tem como levantar capital pois nem mesmo um direito de propriedade bem definido existe.
É graças ao processo formal de propriedade que uma fábrica pode ser uma empresa, dividida entre milhares de acionistas, ou uma casa pode ser uma garantia de empréstimo para um empreendimento. Em outras palavras, os ativos fixos podem ser divididos entre milhares de pessoas sem que isto afete sua integridade física. Isto reduz absurdamente os custos de transação na economia, e cria um círculo virtuoso que transforma os ativos em capital. O dinheiro não pode ser criado ex nihilo, mas sim através de um sistema de propriedade que leve à cooperação entre pessoas para acumular e desenvolver mais produção. Isso só é possível através de um modelo formal de direito de propriedade, que integre a grande maioria da população.
Outro exemplo que mostra o abismo existente entre o Terceiro Mundo e mundo civilizado está na propriedade intelectual. No Brasil, praticamente não existem pesquisas sérias que tragam significativos avanços tecnológicos. Isso ocorre pois não há uma regra clara e confiável para as patentes, para proteger os direitos de propriedade intelectual. O Brasil é mestre na direção contrária, de quebra de patentes, e ainda se orgulha disso. Já nos Estados Unidos, se respeita tal direito, e isso incentiva o ramo de pesquisas. Da mesma forma que o direito à propriedade física é crucial para a criação de capital num país, a preservação da propriedade intelectual é condição sine qua non para o avanço tecnológico. Imaginem se Bill Gates vivesse no Brasil: será que o mundo teria tido acesso ao progresso que a Microsoft possibilitou? Na mesma linha, diversas curas e avanços na medicina só foram possíveis pois os laboratórios tinham a garantia de patentes, possibilitando um bom retorno sobre seus investimentos em pesquisa. Tais avanços não foram obtidos através do altruísmo de alguns cientistas, mas sim pela busca do lucro, protegido pela lei.
Desde 1990, aproximadamente 85% dos novos empregos criados na América Latina foram nos setores ilegais. Cerca de metade do PIB da Rússia vem do mercado negro. Esses números mostram a gravidade da situação nesses países, que não obtiveram sucesso ainda em absorver os mercados ilegais dentro de um modelo formal integrado de propriedade. As leis complexas, processos burocráticos incrivelmente lentos, custos proibitivos de se manter legal, impostos elevados, tudo isso empurra a maioria das pessoas para a ilegalidade. Via de regra, ninguém prefere ficar no submundo do crime. Os governos e elites precisam entender que são as regras do jogo que estão inadequadas, impossibilitando a integração de todos dentro do mesmo modelo. As leis não podem ser criadas sem levar em conta a realidade do povo e nação. Quando o governo estende direitos incríveis para os trabalhadores, não pode ignorar as leis naturais entre oferta e demanda de trabalho. Afinal, são exatamente todas as regalias garantidas aos trabalhadores que fizeram com que mais de 50% da mão-de-obra nacional fosse parar na informalidade.
Se as leis escritas estão em conflito com as leis as quais os cidadãos vivem, descontentamento, corrupção, miséria e violência serão conseqüências inevitáveis. As leis oficiais precisam estar em acordo com a realidade dos fatos, pois papel e caneta não são capazes de alterar a natureza dos homens. Se os custos de seguir as leis são elevados demais, naturalmente serão criados contratos paralelos, como existem nas favelas e tantos outros universos ilegais. Com isso, todos os ativos existentes nesse outro universo não poderão fazer parte do modelo formal e nacional de propriedade, e nunca se transformarão em capital.
Para conseguirmos virar o jogo, tornar o capital acessível às massas, precisamos descobrir as verdadeiras “leis populares”, aquelas regras construídas através de um processo natural de contrato social. Quando existe consenso sobre o direito de propriedade, quando as regras do jogo são formadas de baixo para cima, e os governos e as leis existem justamente para garantir o cumprimento de tais regras, consegue-se chegar a um modelo unificado e formal que permite a formação de capital.
Desafiar o status quo nunca é algo fácil. As barreiras serão muitas, pois sempre alguém perde alguma ciosa. No caso, as elites podem ser cooptadas pelo argumento não altruísta, mas de que seus bolsos podem engordar bastante se levarmos capital para as massas. Os pobres precisam ser convencidos de que a transição é benéfica para eles, de que migrar da ilegalidade para um sistema formal de propriedade abrirá caminhos incríveis para eles, novas oportunidades, e que os custos desta transição serão menores que os ganhos potenciais de se capitalizar seus ativos mortos. Para isso ser possível, o governo precisa definir regras claras e de acordo com a realidade popular, reduzir drasticamente o processo burocrático e os custos da legalidade, através de menores impostos obtidos por um governo menos inchado.
Enquanto o capital não chegar às massas, o sentimento de inveja, exploração e até luta de classes irá existir. A revolta contra a globalização cresce pois cada vez mais uma parcela maior da população se sente à margem deste processo. Podem comer no McDonald’s e usar Nike, mas estão fora do processo formal de propriedade. Os governos precisam integrar estas pessoas ao sistema legal, adaptando este para as realidades já existentes nos contratos sociais espalhados pelo mundo informal. Os governos precisam reduzir os custos de ser formal, reduzindo seu tamanho e impostos. Precisa transmitir confiança à população, através de regras claras e o cumprimento destas. Precisa desmontar os entraves burocráticos, que praticamente inviabiliza novos empreendimentos.
Não foi o capitalismo que falhou no Terceiro Mundo, pois este nunca existiu de facto. A falha está na não adoção de um modelo correto que possibilite o acesso e acúmulo de capital da nação. O inimigo não é o capitalismo, mas sim o Estado inchado, que impossibilita o capitalismo de chegar às massas.
Texto presente em “Uma luz na escuridão”, minha coletânea de resenhas de 2008.
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