Passei minha terça-feira imerso no mundo dos Panteras Negras. Vi o filme da Marvel, e também o documentário da Netflix: “Panteras Negras – A vanguarda da revolução”. Tentarei, a seguir, resumir minhas principais observações de ambos, traçando um paralelo entre o filme do super-herói e o movimento revolucionário que incendiou a América nos anos 1960, a ponto de ser considerado por Edgar Hoover, do FBI, como a maior ameaça doméstica.
O filme da Marvel é bom. Há, claro, um tom racial forte, como não poderia deixar de ser, e também uma grande concessão ao feminismo, com as mulheres “empoderadas” se destacando. Sobra para a América “colonizadora”, para a CIA, como quase sempre ocorre nesses filmes. Mas, justiça seja feita, e com algum spoiler, o homem branco franzino da CIA se mostra um herói de verdade depois, enquanto negros são vilões também.
Um parêntese: na era extremamente chata do politicamente correto e da marcha das “minorias oprimidas”, claro que seria impossível agradar a todos, e o movimento LGBT se manifestou reclamando da ausência de personagens gays no filme. Pelo visto todo filme, para “lacrar”, terá que ter heróis negros, mulheres, gays, anões, trans, muçulmanos, todos unidos na luta contra o Mal, incorporado na imagem de homens brancos ocidentais. Fecho o parêntese.
Kyle Smith, na National Review, afirma que o filme simplesmente “entrega”, ou seja, atende às expectativas. Acompanho o relator. O vilão, personagem de Michael B. Jordan (de “Creed”), representa bem o niilista movido por ressentimento, aquele que pretende destruir tudo e recomeçar o mundo do zero, em seu ímpeto revolucionário. Abandonado após a morte do pai, entra para as Forças Armadas (SEAL) para se tornar uma máquina de matar, e quer vingança, poder, destruição.
Ele é o ícone do movimento Black Panther, não o próprio Pantera Negra, herói do filme, que entende a importância de manter o poder longe de certos tipos. É um embate entre Malcolm X e Martin Luther King. Se o legado da escravidão era cruel, como reagir? Se havia racismo e leis segregacionistas, o que fazer? Alguns queriam melhorar a vida dos negros; outros pareciam mais preocupados em se vingar dos brancos “malvados”. Propostas construtivas versus vingança.
Wakanda, o país que foi atingido por um meteoro e acabou tendo um mineral poderoso, o vibranium, fecha-se para o mundo. Um erro, como nosso herói aprende. Mas se a troca é desejável, também é preciso tomar cuidado, não só com os colonizadores, mas com os que tentarão usar o poder e o conhecimento contra a liberdade. E isso vale para todos, brancos ou negros. Vale para o vilão, que tem sangue nobre, mas motivações equivocadas.
Como tantos que formaram e lideraram o movimento Panteras Negras. O documentário da Netflix tem claramente um viés favorável ao grupo, ainda que tente mostrar um pouco do outro lado. Mas dá para perceber como era a raiva, o ressentimento, o rancor que os movia, não o sincero desejo de avançar. Muito mais do que “libertar” os negros, os Black Panthers queriam destruir o capitalismo, o “sistema”, atacar a polícia, pregar o comunismo. Não por acaso flertaram com os piores regimes do mundo naqueles agitados anos rebeldes.
Algumas pessoas com boas intenções foram seduzidas? Sem dúvida. Todo vilão que se preza é sedutor. Sua mensagem ecoa nos corações dilacerados: “power to the people”, repetiam com os punhos cerrados. Só resta saber qual povo, e como. Para tão “nobre” fim, quaisquer meios eram aceitáveis. Os panteras negras se tornaram rapidamente marginais comuns, traficantes, assassinos, terroristas. Estavam lutando pela “libertação”, e isso permitia tudo. Nada diferente do que todo comunista mundo afora (vide as Farc).
A ideia do pan-africanismo é tentadora, mas falsa. A África é um continente formado por tribos eternamente em conflito, e nunca foi preciso ter a presença do homem branco para tanto. Os negros escravizavam os negros. No filme, as tribos de Wakanda conseguem paz sob um rei forte, justo, e com forte apego às tradições, numa pitada bem conservadora até: “praise the anscestors”, repete a reza. Quando essa cola social se perde, o caos passa a reinar, e uma tribo luta contra a outra.
Os negros americanos são africanos? Onde há mais liberdade, prosperidade e oportunidade para os negros: na América ou na própria África? E alguém vai mesmo sustentar que a culpa do fracasso africano é dos brancos, dos colonizadores? Então como explicar países que ficaram relativamente blindados da colonização serem igualmente ou mais atrasados? E como explicar outros países que foram colônias europeias e progrediram, como a Austrália ou os Estados Unidos?
A riqueza oculta de Wakanda e seu estilo de vida, seu apreço pela ciência e tecnologia, aliás, assemelham-se bastante ao Ocidente, não à realidade da África. À exceção de uns movimentos corporais ao ritmo de batuque que soam até caricatos, trocar a cor da pele dos personagens não faria qualquer diferença ali. As novas lideranças em Wakanda querem usar seu poderoso minério para ajuda internacional, não como arma de destruição e conquista, como desejava o vilão. Kyle Smith conclui:
Isso significa que o “Pantera Negra” representa muito do contrário do que o movimento político homônimo defendeu. Espero que este ponto seja ignorado por muitos dos seus fãs, mas o “Pantera Negra” toma o lado de elites sóbrias e sábias que adotam a mudança incremental em vez de líderes de multidões carismáticos que alimentam as chamas da raiva e da revolução. Seu personagem mais atraente pode ser um análogo para Malcolm X, mas é muito um filme do tipo de Martin Luther King Jr.
A narrativa de “justiça e igualdade” serviu, nos anos 1960, para mascarar um desejo de ódio, vingança, violência. Tanto que Huey Newton, um dos líderes do movimento, virou um bandido comum, um gângster, “uma porra de um maníaco” cercado de marginais, como disse um ex-colega no documentário. O movimento comunista racial revolucionário atraiu jovens entusiasmados, e essa foi sua força e sua fraqueza, como um ex-membro constatou. Era muita vontade de ação, e pouca deliberação, raciocínio, pensamento crítico.
Outro ponto importante é a sedução que exercia nas elites brancas, que demonizavam. Jane Fonda os recebeu em sua cobertura, armados com fuzis, e esses eventos foram eternizados por Tom Wolfe em Radical Chic, tema central do meu Esquerda Caviar também. Trata-se de um fenômeno interessante, sobre como os radicais violentos conquistam o imaginário de uma elite entediada e culpada, algo que continua em nossos dias com força total, especialmente no meio universitário.
Mas o filme da Marvel não acende vela para esses panteras negras, que estão representados no papel do vilão. Já o herói está mais para um Martin Luther King mesmo, com o conselho de sábios que poderiam ser, no mundo real, gente como Thomas Sowell ou Walter Williams, não Spike Lee e companhia. Nosso herói não quer incendiar o mundo, fazê-lo conhecer sua força, seu poder, ajoelhar-se diante de sua suposta superioridade. Ele quer, ao contrário, um convívio pacífico, mutuamente benéfico, que agregue em vez de subtrair.
O filme da Marvel fala sobre a velha luta entre o Bem e o Mal, e esse embate não depende da cor ou da raça. O movimento criminoso Black Panther era formado por negros, mas contou com amplo apoio e financiamento de brancos da elite. Do outro lado, tentando fazer valer a lei, impor a necessária ordem, estavam policiais sem a condição financeira dessa elite branca, e em muitos casos negros.
Como ainda hoje acontece, dessa vez com o Black Lives Matter, uma espécie de Black Panther com nova embalagem, defendido pelos milionários brancos do Partido Democrata, por jornalistas, por universitários, e combatido por policiais, muitas vezes negros, que tentam apenas garantir a lei e a ordem, válidas igualmente para todos.
Não é preciso negar a legitimidade de certas demandas, da própria revolta, especialmente numa época em que ainda existiam leis segregacionistas, para condenar tais movimentos. Mas a forma de lutar faz toda diferença. Aqueles que lutam seguindo líderes carismáticos que falam em nome do povo e monopolizam as virtudes, lançando mão de métodos criminosos e violentos em busca de seu ideal coletivista, estes sempre serão um enorme perigo. Sejam brancos ou sejam negros, não importa.
Rodrigo Constantino