Desde sempre as massas representaram grupos instáveis, muitas vezes com sede de vingança e de linchamento público. Para garantir os direitos individuais contra essa multidão é que temos uma constituição que preserva o estado de direito, com mecanismos de freios, contrapesos e divisões de poderes. Numa república, as minorias devem ser protegidas. Se dois lobos e uma ovelha tiverem que decidir qual será o jantar com base no voto majoritário, fica evidente que o resultado jamais poderá ser considerado justo.
Gustave Le Bon, em seu livro “Psicologia das multidões”, escreveu: “Uma massa é como um selvagem; não está preparada para admitir que algo possa ficar entre seu desejo e a realização deste desejo. Ela forma um único ser e fica sujeita à lei de unidade mental das massas. Como tudo pertence ao campo dos sentimentos, o mais eminente dos homens dificilmente supera o padrão dos indivíduos mais ordinários. Eles não podem nunca realizar atos que demandem elevado grau de inteligência. Em massas, é a estupidez, não a inteligência que é acumulada. O sentimento de responsabilidade que sempre controla os indivíduos desaparece completamente. Todos os sentimentos e atos são contagiosos. O homem desce diversos degraus na escada da civilização. Isoladamente, ele pode ser um indivíduo; na massa, ele é um bárbaro, isto é, uma criatura agindo por instinto”.
A ditadura popular é tão nefasta quanto a de um déspota todo-poderoso. Aristóteles escreveu em “A política”: “Onde as leis não têm força, pululam os demagogos. O povo torna-se tirano”. Ele pergunta: “Se, por serem superiores em número, aprouver aos pobres dividir os bens dos ricos, não será isso uma injustiça?” Claro que sim. No entanto, essa seria a justiça obtida por simples votação majoritária, caso não existissem regras de proteção às minorias. Seria apenas uma ditadura da maioria. Aquilo que Alexis de Tocqueville tanto temia que a democracia se transformasse.
É verdade que o preço da liberdade é a eterna vigilância, mas alguém acha mesmo possível ou desejável que “o povo” permaneça nas ruas durante todo um governo? A democracia representativa serve justamente para isso. Se não há mais confiança no Congresso, tido como essencialmente corrupto, então é a própria democracia que corre perigo. Achar que um líder “amado pelo povo” que use a pressão constante das ruas representa um bom substituto para um parlamento eleito é cair em uma perigosa falácia. A narrativa de um Centrão podre boicotando um governo federal imaculado pode ser sedutora, mas ignora que os votos dos deputados e senadores valem tanto quanto os do presidente, que não foi eleito para ser imperador absolutista.
Artigo originalmente publicado pela revista IstoÉ