Participo de grupos de debates e tenho notado uma esperança ingênua e perigosa de alguns no “povo” como fator de redenção do país. Eis a narrativa, endossada pelo guru Olavo de Carvalho: Bolsonaro venceu com 57 milhões de votos para impor uma ruptura no antigo sistema, enterrar a “velha política” e passar as reformas sonhadas. Bolsonaro é amado pelo “povo” e precisa usar esse elo direto para superar as instituições intermediárias, como o Congresso.
Há vários problemas nessa narrativa, a começar pelo viés fascistoide de líder amado pelo povo que vai desafiar todo o establishment. Mas mesmo sem levar esse aspecto em conta, resta perguntar: que povo? Que povo é esse de que esses bolsonaristas tanto falam? Aquele que fez o PT ter, ainda, a segunda maior bancada no Congresso? Ou aquele que continuou votando em políticos tradicionais? O professor Paulo Cruz foi direto ao ponto:
O “povo” é uma entidade difusa, não algo monolítico. Todo populista sempre tentou falar em nome do povo, mas não há ninguém com procuração para representar todos os mais de 200 milhões de brasileiros. Somos inúmeros grupos dispersos, com interesses e princípios distintos, tentando um convívio nem sempre cordial.
Um político conservador, numa conversa em off, desabafou sobre a postura do bolsonarismo: “Sempre apostando na tal aliança com o povo. O povo não luta por governos. Nunca lutou”. E olha que ele é da base governista! Ele acrescentou: “Outro erro primário do bolsonarismo é achar que só Bolsonaro foi eleito”. Exato!
Gostaria de saber: os votos que elegeram Bolsonaro valem, mas aqueles que elegeram os deputados no Congresso não? Os parlamentares não têm legitimidade? Quem deposita toda a esperança apenas em Bolsonaro, como se ele fosse capaz de impor uma agenda única vencedora (e deixando de lado que foram vários fatores que o levaram a vitória), despreza a democracia representativa e deseja um déspota “esclarecido”, um super-presidente com poderes para decretar mudanças.
É uma visão autoritária sobre o funcionamento da política. Não resta dúvida de que nossas instituições estão fragilizadas, o que justifica em parte o desânimo ou mesmo a descrença nelas. Mas os revolucionários jacobinos precisam explicar, na prática, como suplantar esses instrumentos. Sempre falam em termos vagos, em “pressão popular”, ou em “um cabo e um soldado”, aqueles mais afoitos e ditatoriais.
O “povo” não quer fechar o Congresso e o STF, e mesmo que queira, isso não significa que fosse desejável. O “povo” já quis muita coisa ruim e autoritária. O “povo” muitas vezes quer linchamento em praça pública, ou prefere soltar Barrabás em vez de Jesus Cristo. O “povo” também pode apoiar o PT, ou o nazismo. É por isso que existem instituições de pesos e contrapesos, ainda que imperfeitas.
Pregar a implosão de tudo isso para que Bolsonaro, sozinho (com sua militância virtual), possa impor a “agenda vencedora” nas urnas é temerário, simplista e ignora como o mundo real funciona. O fato é que boa parte do povo quer melhores empregos, mais segurança, menos corrupção. Mas daí a estarem todos casados com o presidente em si vai uma longa distância.
Se as condições não melhorarem, a narrativa bolsonarista vai tentar culpar a mídia, o Congresso, os liberais, mas não vai colar. O “povo” não vai às ruas defender um governo cujos resultados são ruins. Jânio Quadros apostou nisso e se deu mal. Os petistas também culpam a mídia, o Congresso, os liberais, mas nada disso impediu o impeachment de Dilma, a prisão de Lula e a derrota de Haddad.
Ainda não é tarde, creio, para que Bolsonaro entenda isso. Mas não tenho esperanças de que seus filhos Carlos e Eduardo possam compreender, tampouco o guru deles, Olavo. Esses são casos perdidos, e dependem do clima constante de guerra, de inimigos mortais e terríveis por todo lado, da cizânia permanente. Já o governo não depende isso. Ao contrário: seu sucesso depende da capacidade de unir, aglutinar, contemporizar.
Para a sensação de nobreza dos “puristas” vai ser ótimo se Bolsonaro cair ou virar pato manco. Vão acusar a conspiração do sistema, da velha política, da imprensa e dos liberais, e Olavo certamente poderá conquistar mais alguns “alunos” para sua seita, enquanto Eduardo vai intensificar o discurso revolucionário ao lado de Steve Bannon. Mas para o Brasil isso será péssimo.
Nós todos, liberais e conservadores burkeanos (de boa estirpe), alertamos. Se o presidente desse muito ouvido ao guru e sua turba fanática, a governabilidade seria inviável e o governo fracassaria. As previsões, infelizmente, têm se mostrado corretas. Os olavetes querem dobrar a aposta, esticar ainda mais a corda, ver o presidente peitar tudo e todos. Se ele fizer isso, cai no dia seguinte. Se ele se afastar dessa gente, ainda tem como salvar seu governo – e o Brasil. O “povo” agradece.
Rodrigo Constantino
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