Por Ricardo Bordin, publicado pelo Instituto Liberal
Meu avô costumava reiteradamente preconizar durante seus ponderados aconselhamentos: “o direito de uma pessoa termina onde começa o de outra”. A compreensão e a decorrente adoção de tal princípio basilar em uma determinada sociedade implicam na legitimação, por via reflexa, do respeito à propriedade privada e à integridade física de outrem, dentre outras consequências advindas deste professado acatamento de limites da atuação de um indivíduo, em função da não invasão de outras esferas individuais em seu entorno.
Tal pressuposto, portanto, concorre sobremaneira para que pessoas absolutamente desconhecidas possam conviver em relativa harmonia, e a civilização moderna, onde tal conjuntura é cada vez mais comum e necessária nos grandes aglomerações urbanas, pois, agradece. O imbróglio tem início, todavia, quando atitudes aparentemente nocivas tão somente a seus perpetradores acabam por lesar terceiros – ainda que, no curto prazo, ostentem o caráter (apenas aparente) de não iniciar uma agressão.
E para melhor visualizar tal celeuma, melhor lançar mão de um exemplo drástico. Se meu vizinho resolver suicidar-se, esta ação, a priori, não afeta minha vida. Mas se ele resolver empreender tal ação ateando fogo em sua casa, a coisa muda de figura. No mesmo sentido, é comum observar pessoas patrocinando a possibilidade de levar a cabo determinados atos sob o argumento de que, em tese, estes prejudicam, se for o caso, tão somente àqueles que os executam, mas esbarrando (da mesma forma que o vizinho desgostoso com a vida e metido a incinerador) no fato de que o corolário de diversas condutas, ainda de que forma transversa e não imediata, acaba sendo o de provocar efeitos indesejados a indivíduos não relacionados à consecução de tais condutas.
Em outras palavras, eu não gostaria de precisar usar meu extintor de incêndio apenas porque o moço que mora ao lado resolveu encurtar sua existência de maneira pouco convencional. Neste caso, é ele quem não está respeitando o princípio de não iniciação de agressão, pois a resultante de sua ação alastra-se até a minha residência.
Mas e se ele resolvesse seu “problema” saltando pela janela? Convenhamos que não seria uma cena das mais belas visualizar um cadáver estatelado na calçada, e ainda haveria o risco de ele aterrissar sobre um transeunte, mas, à primeira vista, os prejuízos ficariam restritos somente ao próprio suicida. Mas para não haver dúvidas de que os moradores de nosso bairro não seriam, de forma alguma, afetados negativamente pela decisão do rapaz, o ideal seria (se não houver como demovê-lo da iniciativa, ou mesmo como saber que ele pretende morrer) que ele fizesse uso de algum método menos espalhafatoso.
Observa-se, pois, que entre um comportamento que claramente agride a terceiros (fogo) e outro que, claramente, não nos diz respeito e sobre o qual não devemos possuir qualquer ingerência (um coquetel mortal de remédios, por exemplo), resta sempre uma zona cinzenta, na qual generalizações abstratas não se prestam a inferir se houve ou não desrespeito ao princípio da não iniciação de agressão (salto pela janela). Neste cenário, somente uma análise pormenorizada de cada caso concreto será capaz de comprovar se houve ou não prejuízos a outras pessoas porventura envolvidas não intencionalmente no campo de incidência dos agravos de determinado procedimento. E, claro, sempre haverá controvérsias, e diferentes grupos de indivíduos podem vir a chegar a conclusões diversas.
As campanhas em prol da legalização do consumo e do comércio de entorpecentes não costumam resistir, tampouco, a uma análise similar. Traz-se à baila, comumente, a premissa de que um usuário de uma dada substância alucinógena seria soberano de suas ações, visto que seria ele livre para cheirar, fumar ou injetar seja lá o que for em seu próprio corpo e arcar com as consequências advindas. Aqui, tal qual na passagem referente ao vizinho infeliz (e aquele estudo de caso não foi selecionado aleatoriamente), há duas zonas de certeza e uma intermediária, a qual abre margem para discussão e opiniões divergentes.
Existem drogas cujo consumo, na esmagadora maioria das vezes, não acarreta prejuízos a terceiros (como o álcool), e nestes casos, mais racional é liberá-las ao público, restringindo seu uso apenas em situações específicas (como durante a condução de veículos), e punindo aqueles que cometam crimes sob a influência da substância – como os valentões embriagados que saem quebrando tudo, e que, felizmente, são minoria entre os que apreciam bebidas que passarinhos não bebem. Ou seja, como um percentual muito alto daqueles que prestam homenagens a Baco o fazem de forma ordeira, não se justificaria proibir a prática (sob o risco de dar origem a um mercado negro paralelo desnecessário, como ocorreu nos USA na década de 1920), mas sim coibir e promover a conscientização sobre os riscos dos excessos.
Existem, por outro lado, drogas cujo consumo conduzirá, invariavelmente, a geração de prejuízos para toda a coletividade na qual está inserido o usuário. Ou alguém saberia informar qual o “nível seguro” de crack que uma pessoa pode consumir sem transfigurar-se em um verdadeiro zumbi que passará a matar apenas para roubar um tênis e comprar a próxima pedra? Ou então, quem sabe, indicar-me pessoas que “consomem moderadamente” heroína, sem acabarem na sarjeta ou em uma instituição de reabilitação (contra a própria vontade, no mais das vezes, e sem nenhuma garantia de recuperação).
Não tem jeito: as estatísticas deixam claro que não há como “consumir apenas socialmente” cocaína e seus congêneres, como ocorre com o álcool. Viciar em algum desses entorpecentes, indefectivelmente, significa arruinar ou prejudicar a vida de inúmeras pessoas à volta do dependente, e, portanto, justifica-se proibir sua fabricação, comércio e uso. Ressalto que controlar a oferta (proibir a produção e comercialização), sem controlar a procura (proibir o consumo), não surte nenhum efeito positivo, pois a demanda sempre manterá o processo ativo – exatamente como ocorre hoje.
Tendo lidado com os extremos, chega a parte mais difícil: definir quais substâncias alucinógenas estão entre um estágio e outro, e como proceder em relação a cada uma. Drogas sintéticas consumidas em festas, como o ecstasy, costumam vitimar muitos jovens, mas seu consumo inicia uma agressão a terceiros? E o que dizer da cannabis, motivo de tanta discórdia, e que foi recentemente legalizada em mais cinco estados americanos? Seria ela capaz de provocar distúrbios de ordem coletiva a partir de seu uso indiscriminado? Enquanto não há subsídios sólidos o bastante para orientar nosso discernimento, nestes casos, o que fazer?
Há uma máxima muito conhecida e aplicada no Direito Penal que afirma que In dubio pro reo, ou seja, se não há como afirmar sem sombra de dúvidas que o condenado é culpado, ele deve ser absolvido. Tal princípio encontra ressonância ainda em outras áreas jurídicas, como o Direito do Trabalho – in dubio pro operario. Sua fundamentação consiste em considerar que, em não se tendo certeza do ocorrido, busque-se causar o menor dano possível em caso de erro interpretativo do órgão julgador.
E acredito que esta lógica deve ser adotada quando da classificação das drogas em legais ou ilegais, da seguinte forma: se há certeza absoluta de que os prejuízos gerados pelo consumo não passarão da pessoa do usuário, ela deve ser liberada (com os condicionantes particulares de cada caso); se não há como ter essa certeza, ele deve ser proibido, até que, eventualmente, surjam novas evidências que alterem este status quo. E a desastrosa experiência holandesa com a maconha reforça o entendimento de que, até segunda ordem, mantenham-se tais entorpecentes – ainda que sejam menos agressivos que seus similares de maior potencial psicodélico, e causem menos dependência – vetados pela legislação pátria. Realizar experiências desta natureza, não amparadas em incontestáveis conclusões científicas, em função de demandas de grupos barulhentos e pouco ocupados, pode redundar em um quadro social grave e de complexa reversão.
É de se esperar que, no intercurso deste exercício de elucubração, seja suscitado ainda o argumento de que a legalização irrestrita das drogas teria o condão de, com uma tacada só, acabar com o poder econômico dos traficantes, diminuir a violência, gerar empregos lícitos e arrecadação de impostos. Pois ninguém imagine que, uma vez privados de seu lucrativo mercado, os traficantes tornar-se-ão vendedores de cachorro-quente: eles irão é explorar outras atividades criminosas, feito assalto, extorsão e sequestro.
E se impulsionar a economia nacional a qualquer custo entrou na pauta do dia, talvez seja o caso de legalizar também o tráfego de órgãos humanos, ou quem sabe permitir a volta da escravidão e da servidão por dívida; afinal, como dizem alguns desavisados no afã de defender as drogas, “mesmo sendo proibido, as pessoas continuam fazendo, não adianta controlar, é como enxugar gelo”. Necessário é, sim, estabelecer penas duras para os crimes relacionados aos entorpecentes, tal como a Indonésia trata do assunto. Daí veremos se “as pessoas continuam fazendo”.
A mesma dialética, quando aplicada às campanhas pela legalização do aborto, conduz a inferências semelhantes. Por um lado, pessoas que não consideram correto assassinar bebês jamais irão apoiar o extermínio de crianças em adiantado estágio de formação no ventre materno – claro que a Planned Parenthood, Hillary Clinton, Margaret Sanger e demais eugenistas não contribuem para engrossar essas estatísticas; muito pelo contrário. Por outro lado, utilizar métodos contraceptivos (até mesma a famigerada pílula do dia seguinte) dificilmente será atitude reprovada por um número considerável de pessoas – ao menos sob a guarida de argumentos convincentes, já que os únicos opositores de tal prática restringem-se, quase sempre, a religiosos fervorosos – e não há como exigir que não adeptos de tais crenças observem suas normas.
Mas tudo complica quando abordamos a zona cinzenta, a qual, no caso em tela, consiste em afirmar em que ponto da gestação abortar implicaria em cometer homicídio. Ora, se, conforme a linha de raciocínio supracitada, a incerteza deve desfavorecer a ação pretensamente invasiva da liberdade alheia, enquanto persistir a “controvérsia” sobre o início da vida (muito embora, conforme a literatura médica, reste inconteste que, com poucas semanas, já há sinais vitais emitidos pelo diminuto ser humano), o aborto, fora das hipóteses previstas no artigo 128 do Código Penal, deve ser terminantemente proibido.
Alegar tão somente que o “feto” não sentiria dor em caso de morte nos primeiros estágios de vida faz tanto sentido quanto definir que, caso eu aplique uma dose cavalar de morfina em um desafeto qualquer e dispare contra sua cabeça, sou inocente – afinal, ele não sentiu dor. Trespassar a linha do direito à vida de terceiros, pois, é um crime deveras sério para ser relevado em razão de uma suposta dubiedade técnica. Até que tal imprecisão seja dirimida, não é razoável arriscar vidas humanas.
E em relação ao direito fundamental de ir e vir, o qual seria, teoricamente, desrespeitado pelas fronteiras estabelecidas pelos países? Fixar parâmetros em lei a serem aferidos pelas autoridades de imigração, para, somente então, permitir o ingresso e a permanência de estrangeiros em uma determinada nação, configuraria desrespeito à liberdade individual? Quando um forasteiro atravessa a linha limítrofe do país, estaria gerando prejuízos a seus cidadãos? Uma vez mais, há duas situações radicais que não costumam suscitar debates, e a costumeira zona cinzenta.
Não mantemos as portas de nossas casas fechadas sem motivo: não é qualquer um que pode ter acesso ao lugar onde guardamos parte significativa de nosso patrimônio e onde visamos salvaguardar a vida de pessoas com quem nos importamos. Precisamos selecionar quem poderá adentrar em nosso domicílio ou não – a carta magna, não à toa, o faz inviolável. E é claro que não abrirei a porta se levantar suspeitas sobre quem estiver tocando a campainha. Assim justifica-se, por si só, a triagem de potenciais imigrantes.
Em se tratando de pessoas com ficha criminal pretérita ou qualquer outra mancha significativa em seu “currículo”, faz sentido manter a porta trancada para estes indivíduos, em nome da segurança nacional e da manutenção da ordem social – quem duvida ou sente melindres diante do conceito, confira melhor o que está acontecendo em Roraima diante da debandada de venezuelanos descontentes com o “socialismo do século XXI” – ou simplesmente dê o exemplo então, e abra as portas de sua moradia para todos aqueles que quiserem entrar, quem sabe. Aqueles que lidam com os efeitos nocivos da imigração ilegal e os que meditam do conforto de seus lares distantes de demarcações fronteiriças, costumam, não por acaso, expressar opiniões bastante distintas em relação ao tema. É moleza defender que os homens não deveriam ser “documentados” usando o wifi da lanchonete do campus da USP.
A contrario sensu, é bastante coerente que determinadas nações, em comum acordo, abram suas fronteiras a cidadãos de outros países, conforme a necessidade e a conveniência de ambas as partes. Se a população canadense está em franco processo de envelhecimento, é natural que seja facilitada a entrada de jovens naquele país; O Brasil valeu-se muito, em tempos recentes, da imigração europeia e oriental, cujos representantes agregaram muito conhecimento e contribuíram de forma relevante com o desenvolvimento de certas regiões de nosso país; Hong-Kong valeu-se de milhões de refugiados chineses na construção de uma das nações mais prósperas do mundo; se um determinado tipo de mão-de-obra está em falta, torna-se coerente descomplicar a vinda de tais profissionais.
Mas faz-se necessária bastante parcimônia neste processo, especialmente em países cujo povo logrou elevar seus índices de desenvolvimento humano. Exigir que os Estados Unidos, por exemplo, franqueassem a entrada indiscriminada de estrangeiros (como pretendia fazer Hillary Clinton) equivaleria a demandar que os cidadãos do Morumbi e do Leblon derrubassem os muros de suas casas. Certos estão Barack Obama e Bill Clinton, o presidente que mais deportou imigrantes ilegais no último século e o que construiu uma cerca na fronteira com o México de mais de mil quilômetros de extensão, respectivamente – muito embora seus discursos sejam politicamente corretos; só os discursos. Quem quer imigrar para a América, pode evitar figurar na zona cinzenta de desconfiança simplesmente submetendo-se ao processo seletivo daquele país. Sendo aprovado, por certo será bem-vindo.
Isto é, se, a pretexto de garantir a liberdade de alguns, implementam-se medidas que promovem o cerceamento de liberdade de terceiros – tal qual vem ocorrendo na Alemanha –, termina-se por ferir de morte o direito de ir e vir (em paz) dos próprios cidadãos que tornaram uma determinada nação evoluída a ponto de atrair a atenção e o interesse de pessoas mundo afora.
Se assim for, que motivação teremos para tornar o Brasil uma economia pujante, se seremos obrigados pela patrulha dos “defensores da liberdade”, na sequência, a permitir que todo e qualquer pretenso imigrante por aqui se instale? E isso nada tem a ver com o Nacionalismo exacerbado, no sentido de considerar determinados povos inferiores por natureza. Tem a ver, sim, com preservar o bem-estar daqueles que muito sacrificaram para florescer suas nações, por meio de uma análise criteriosa daqueles candidatos a fazerem parte deste povo.
E antes que alguém venha a ponderar que não seria tarefa estatal reprimir o comércio de drogas, a realização de abortos e a entrada de imigrantes ilegais, enfatizo que até mesmo Ludvig Von Mises advogava que a tarefa primordial do Estado seria, justamente, a preservação da ordem, evitar o caos, a “produção de segurança”. Se sequer esta atividade puder ser delegada ao Estado, estamos falando, provavelmente, do Anarcocapitalismo, cujo maior expoente, Murray Rothbard, chegou a tecer elogios ao facínora Che Guevara e a considerar que seria legalmente justificável um pai deixar seu filho morrer de fome. Se a algum leitor apetece tal ideologia, faça bom proveito, mas o extremismo do princípio da não iniciação de agressão pode conduzir a bizarrices como essas.
Certa feita, adentrei um sports bar americano para assistir a um jogo do Dallas Cowboys. Como tardei a chegar, somente foi possível assistir ao jogo em pé, e até mesmo esta revelou-se tarefa complicada, pois o campo de observação das pessoas sentadas ficava prejudicado em várias posições em que tentei colocar-me. Percebi, na ocasião, uma preocupação constante dos presentes em saber se não estavam bloqueando a visão dos demais torcedores.
E é por aí mesmo: se eu tenho a liberdade de procurar um bom lugar para ver a partida, possuo, por outro lado, o dever de não prejudicar este mesmo direito daqueles que chegaram antes. Não estava tentando ver o jogo com um manto de invisibilidade sobre os ombros. Carne de feio não é transparente. Mas muita gente quer ver sua “liberdade” extrapolada até ficar a dois palmos da TV, sem nem cogitar ser “oprimido” pelos demais espectadores, e tal comportamento manifesta-se em diversas outras facetas, como constatado.
“Princípio da não iniciação de agressão” no dos outros é refresco, e, muitas vezes, essa sanha individualista mostra-se tão quimérica quanto seu primo distante, o socialismo utópico. Se seus correligionários lograssem praticar quaisquer dos atos acima elencados sem prejudicar a mais ninguém, sua teoria seria de grande valia na defesa da validade destas atitudes. Mas em um mundo onde vivemos em sociedade, é improvável que os estilhaços destas práticas daninhas não atinjam outras pessoas totalmente desvinculadas da conduta, ainda que haja uma ilusão de que somente o sujeito da ação será lesado – invoquemos Bastiat para tentar enxergar, também, os prejuízos que não se veem prontamente.
Com o que concluo: liberdade sim, mas com respeito ao próximo – alguém já pregava este dogma há mais de dois mil anos, aliás…