O PT é bolivariano? Segundo o historiador Marco Antonio Villa, não. Em sua coluna de hoje no GLOBO, Villa chama de “néscios” aqueles que julgam o PT como um misto de comunista, bolivariano e populista. Discordo, e pretendo justificar abaixo minha discordância. Entendo o principal ponto de Villa, mas acho que ele erra no diagnóstico do inimigo.
Villa resgata o Bolívar histórico para mostrar que não há nada de comunista nele, e usa inclusive a biografia que Marx escreveu do homem para reforçar seu ponto. Ora, eu mesmo já usei tal biografia em um artigo no GLOBO para esfregar a impossibilidade de ser marxista e bolivariano ao mesmo tempo na cara dos bolivarianos, mas isso não muda o seguinte fato: os marxistas bolivarianos são marxistas, e usam Bolívar de forma incorreta para sua causa.
É, pois, uma mistura estranha entre o nacionalismo bolivariano e o marxismo, assim como a Teologia da Libertação forçou um casamento nefasto entre Jesus e Marx, com predomínio do último. Logo, Villa parece se ater muito ao detalhe histórico e ignora o simbolismo por trás da coisa. Ao afirmar categoricamente que o PT nunca foi bolivariano, Villa se fecha ao que o próprio Lula já cansou de repetir por aí: que possui os mesmos objetivos de Chávez, mas que chegaria mais devagar ao mesmo destino, pois dirigia um Fusca enquanto Chávez dirigia uma Ferrari.
Quando Villa se pega na questão de como cada um chegou ao poder, lembrando que Chávez teve uma tentativa fracassada de golpe militar antes de ser eleito, acho que ele novamente se pega no detalhe e ignora o mais importante: ambos tinham o mesmo projeto totalitário de poder, ainda que os métodos fossem diferentes, adaptados para a realidade de cada país. Diz Villa:
O petismo impôs seu “projeto criminoso de poder” — gosto sempre de citar esta expressão do ministro Celso de Mello — sem que tivesse necessidade de tomar pela força o Estado. O processo clássico das revoluções socialistas do século XX não ocorreu. O “assalto ao céu” preconizado por Marx —tendo como referência a Comuna de Paris (1871) — foi transmutado numa operação paulatina de controle da máquina estatal no sentido mais amplo, o atrelamento da máquina sindical, dos movimentos sociais, dos artistas, intelectuais, jornalistas, funcionando como uma correia de transmissão do petismo. O domínio dos setores fundamentais do Estado deu ao partido recursos e poder nunca vistos na história brasileira. E a estrutura leninista — só a estrutura, não a ação — possibilitou um grau de eficácia que resistiu aos escândalos do mensalão, às inúmeras acusações de corrupção das gestões Lula-Dilma e, ao menos até o momento, ao petrolão.
Aqui Villa peca como historiador, em minha opinião, pois foca muito em Lenin e esquece a “evolução” do próprio marxismo com as estratégias de Antonio Gramsci. Ora, o PT – ou boa parte dele – sempre soube que as vias revolucionárias armadas seriam difíceis ou impossíveis no Brasil. O MST e o MTST, braços armados do PT, servem para fazer pressão, para criar um clima de caos e desordem, o que ajuda em seu objetivo. Mas a tomada do poder seria – como tem sido – pelas vias democráticas. É a democracia sendo destruída de dentro, como ocorreu, aliás, na Venezuela e também na Argentina.
“Se, no seu início, o PT flertou com o socialismo, logo o partido — e suas lideranças — se adaptaram à dolce vita do capitalismo tupiniquim”, escreve Villa. Ora, e a oligarquia venezuelana não fez o mesmo? E a própria nomenklatura soviética não fez o mesmo? O socialismo real, o único existente (pois o comunismo é uma desgraçada utopia que sempre leva a ele), é análogo ao que chamamos de “capitalismo de estado”.
O que há de tão brasileiro nisso, para Villa comparar com a nossa exclusiva caipirinha? É um resultado comum e esperado das práticas socialistas ou socializantes, implantadas pelo PT e pela Venezuela, apenas em graus ou ritmos diferentes. “Como falar em marxismo se Lula sequer leu uma página de Marx?”, pergunta Villa, ignorando que Dirceu e companhia leram Marx, e principalmente Gramsci. Lula é o líder carismático e sem caráter, que usa e é usado pela base leninista ou marxista. O projeto de poder não é somente de Lula, mas do PT. Por isso falamos em lulopetismo.
“Considerar o PT um partido comunista revela absoluto desconhecimento político e histórico. É servir comida requentada como se fosse um prato novo, recém-preparado. Não passa de conceder sentido histórico ao rançoso discurso da Guerra Fria. O Muro de Berlim caiu em 1989 mas tem gente em Pindorama que ainda não recebeu a notícia”, ataca Villa. Mas quem não sabe que o Muro caiu ainda são justamente os petistas e seus defensores “intelectuais”, que insistem na retórica de luta de classes.
O que Villa não enxerga é que o discurso comunista continua vivo, e basta ver como o lucro ainda é tratado como fruto da exploração do trabalho para se dar conta disso. Villa tenta enquadrar o PT e Lula numa fórmula muito original e única, mas esquece que essa tem sido a tendência latino-americana: justamente uma mistura de caudilhismo com populismo e marxismo. Um governo centralizado que concentra muito poder, que usa os recursos públicos para comprar apoio, especialmente dos mais pobres e dos mais ricos, e uma narrativa de luta de classes, em que o estado aparece como o único protetor possível dos “oprimidos”. Não é a cara de Chávez e Maduro? E não é exatamente o que tem feito o PT de Lula?
Creio que o maior erro de Villa é ignorar o que o PT pretende, e focar apenas no que ele foi capaz de alcançar. Citar a liberdade de expressão, por exemplo, é absurdo, pois ignora que ela ainda existe no Brasil não por desejo do PT, mas porque nossas instituições resistiram mais aos anseios do PT. Não foi por falta de vontade dos bolivarianos petistas, que sempre tentaram controlar ou censurar a imprensa. Pergunte ao Franklin Martins e companhia. O bolivarianismo está lá como projeto; apenas não foi emplacado.
Ou seja, se o Brasil (ainda) não é a Venezuela, isso não se dá porque o PT não é bolivariano ou marxista, e sim porque o Brasil é diferente, nossas instituições são mais sólidas, e a reação da sociedade civil tem sido mais firme. Concordo quando Villa descarta como “sandice” a demanda por intervenção militar, e entendo a preocupação do historiador com certa ala da direita que parece saudosista do regime militar. Mas para combater esses excessos não é preciso negar o diagnóstico correto que fazem do PT: é, sim, um partido com um projeto totalitário de poder, que usa um misto de marxismo e populismo para tanto.
Chamem do nome que for, mas se abana o rabo como um cachorro, se late como um cachorro e se anda como um cachorro, então é um cachorro! No caso, um cachorro bolivariano marxista populista!
Rodrigo Constantino