Por Pedro Henrique Alves, publicado pelo Instituto Liberal
Recentemente escrevi sobre a investida dos sindicatos em retomar o imposto sindical, só que agora, com o desconto três vezes maior, na ocasião eu falava sobre aquilo que denomino de “esquizofrenia política”. Após a boa aceitação desse artigo, muitos me vieram perguntar e pedir para que eu esclarecesse essa temática: o que seria, afinal, a esquizofrenia política (ou socialista)?
No romance: Demónios, de Fiódor Dostoievski, um dos personagens da trama é um progressista convencido de possuir uma inteligência superior, o saudoso engenheiro de Petesburgo, Kiríllov. Ele usa um discurso empapado em palavras difíceis, trocando a sequência normal das sentenças para dar a impressão de uma capacidade intelectiva diferenciada — algo meio que “uspiano” ou Karnal. Quando as suas opiniões políticas vêm à tona, percebemos então as suas inclinações revolucionárias, ele é um progressista que acredita que a construção de uma sociedade evoluída requer, antes, a destruição total da sociedade atual. Uma lógica parecida com a de um engenheiro que autoriza a demolição de um prédio estando ele ainda dentro dele.
Em suma, aqui conseguimos ter o panorama exato da mentalidade política que ronda as ideias irrigadas pelo socialismo moderno no Brasil. Esta mentalidade varia entre os anseios nostálgicos de uma revolução armada brasileira — ao estilo bolchevique de 1917 —, isto é, com punhos cerrados no alto, foices nos ombros, marchando ao som de Chico Buarque; unido, também, a um discurso de revolução cultural ao estilo de György Lukács e Antonio Gramsci: a pregação de uma liberdade de pensamento enquanto que, na realidade, o que se prepara é uma hegemonia de pensamento único.
A juventude socialista é uma metamorfose mal concluída entre os revolucionários violentos de outrora, que via a solução nas armas e no poder ditatorial do proletariado; unido, por sua vez, a um socialismo que prega a paz mundial, que solta pombas brancas em Copacabana, luta por direitos femininos e chora por árvores e beagles.
A confusão que está surgindo nas análises políticas atuais é oriunda justamente dessa mistura ontológica de maneiras de ser socialista; essa confusão torna a compreensão da ação comunista na modernidade algo verdadeiramente desconexo e sem sentido. Isto acontece, quando, na modernidade, aprendemos a enxergar dois modos de ser socialista, dois modos distintos e quase rivais; como afirma Platão, tudo em nós tende à organização, e por essa sede natural pela coerência é que deixamos de ver que o socialismo age justamente pela incoerência. Há fundamentalmente, na sociedade contemporânea, dois modos de ser Socialista: (1) primeiramente o que quer a derrubada do poder atual pela ditadura do proletariado, o insuflar de uma revolução armada dos trabalhadores contra os seus patrões burgueses — o dito socialismo reacionário; (2) e há também aquele outro extremo que quer lutar contra o terrorismo colocando rosas nos canos de fuzis, cantando Imagine, de John Lenon, nas praças de Paris para assustar o ISIS, e, é claro, fazendo as “marchas das vadias” para pedir pudor masculino — o dito socialismo pacifista.
O problema é que essencialmente essa diferenciação de modos de ser socialista não existe na realidade, não há esta metamorfose entre revolucionários armados de outrora para comunistas fofinhos de agora; essa mutação não leva a uma completa transformação nem para “A” e nem para “B” no arquétipo socialista. O que comumente se pensa é que o socialismo migrou de uma realidade ditatorial e violenta, para uma vertente mais branda e democrática, de ações mais amenas dentro das legalidades republicanas. De certa maneira é verdade, como já tive a oportunidade de mostrar em meu texto: O globalismo e o que ele esconde, o socialismo atua com mais vigor, atualmente, na cultura e educação como um meio de criar uma hegemonia silenciosa e eficaz. Entretanto, isso não significa que o meio ditatorial foi totalmente desconsiderado pelo socialismo. É, antes, um caminho sempre possível quando a via da legalidade se mostra indisposta às suas retóricas. Uma mentalidade que até visa as vias democráticas, mas que não se furta de usar as vias ditatoriais se as suas intenções, “por bem”, não são alcançadas.
Se no reino animal a metamorfose de uma lagarta faz com que ela se torne uma borboleta, no reino do socialismo o socialista não deixa de ser lagarta (terrorista) e nem se torna completamente uma borboleta (fofos revolucionários); o socialista fica num meio termo assustador e contraditório entre ambas, vivendo com duas personalidades que o leva a possuir duas opiniões conflitantes, porém, assimiladas por um absolutismo relativista. Absolutismo relativista? Não seria isso uma contradição? Não, os maiores ditadores atuaram relativizando regras e absolutizando outras ao mesmo tempo; relativizando direitos naturais absolutos — como o direito à vida e à liberdade de expressão — e instaurando suas doutrinas despóticas com absoluto furor totalitário. Absolutismo e relativismo são duas faces da mesma moeda, ou melhor, duas partes do mesmo cérebro tirânico.
O socialista brasileiro é aquele que não possui problema algum em um instante defender que as violências perpetradas por traficantes e ladrões nas favelas do Rio, na verdade, não são culpa deles, mas de uma sociedade que os excluíram e os formaram à margem, numa mentalidade determinada ao crime. Ou seja, afirmam que o meio pobre e criminoso determina o sucesso e o fracasso, a honestidade e desonestidade, dos indivíduos que ali residem; posterior a essas considerações, o socialista — sem perceber a contradição em que está prestes a cair — elevará a dona Creusa, honesta, que sempre ganhou dinheiro de maneira limpa sem nunca ter se envolvido com os crimes que a cercam na comunidade. Dona Creusa e os traficantes nasceram sob os mesmos problemas, entretanto, uma tornou-se trabalhadora honesta e os outros tornaram-se bandidos; todavia, os doutos marxistas não se perguntam qual a origem desse enigma, e, naturalmente, descartarão a falha de caráter como resposta para o dilema. Afinal, como disse Marx: a moral é uma arma burguesa, uma supraestrutura para oprimir o proletário.
Ou seja, ao mesmo tempo que se arroga que o meio faz o criminoso, no momento posterior o socialista exalta aqueles que são a prova exata de que omeio pode pesar, mas não determinar alguém ao crime.
“Eis que vem à tona a influência subliminar da filosofia marxista: a noção de que não é a consciência do homem que determina a existência, mas, ao contrário, a existência que determina a consciência. Se é assim, os homens ainda deveriam morar nas cavernas, mas é bastante verossímil para abalar a confiança das classes médias que o crime é um problema moral e não um problema de disposição de ânimo” (DARYMPLE, 2015, P. 35).
Sobre essa maneira de pensar, dúbia e contraditoriamente, George Orwell chamou-a de duplipensar, em 1984; Raymond Aron afirma, em seu livro O ópio dos intelectuais:
“Dois erros, aparentemente contrários, mas no fundo interligados, se encontram na origem da idolatria da história. Homens de igreja e homens de fé (Aron denomina os socialistas de “homens de fé”) caem na armadilha do absolutismo e, em seguida, se entregam a um relativismo sem limites” (ARON, 2016, p. 147; grifos meus).
A partir dessa mentalidade defeituosa fica muito fácil para eles pregarem o fim da miséria e, ao mesmo tempo, apoiarem o Nicolás Maduro, que trouxe a maior miséria que a Venezuela já viu na modernidade, chegando ao cúmulo de venezuelanos comendo antas no zoológicos para saciarem suas fomes. Para os petistas, por exemplo, é normal pregar a democratização das instituições políticas nacionais, e defender o regime ditatorial da Venezuela, Cuba e Palestina; para eles é inadmissível a rudeza com que a Polícia Militar atua no Brasil, porém, totalmente aceitável a violência do exército de Nicolás Maduro na Venezuela. Pregaram, anos e mais anos, contra a ditadura militar, espreitando o momento certo para uma ditadura proletária no Brasil; ou vocês ainda acham que o Foro de São Paulo e o bolivarianismo queriam democracia para a América Latina?
O socialista moderno sofre de um transtorno dissociativo de identidade ideológica, é como se todos adquirissem os sintomas de um Gollum, ao melhor estilo tolkiano de composição; possuem raciocínios de um smeagol, no qual, sob a mesma mentalidade, há duas vertentes contrárias que se trançam e se imbramam sem nunca apresentarem um pensamento coerente. Eu consigo imaginar os socialistas discutindo consigo mesmos, buscando articular um argumento mais ou menos válido para condenar a tirania Israelense contra a Palestina, ao mesmo tempo que assinam um manifesto de apoio a Venezuela; imagino os jornalistas em seus computadores escrevendo mais uma redação onde eles atacarão Trump por ter “demorado” um dia para condenar os atos dos supremacistas brancos, entretanto, condenando-o também, quando ele rechaça os demais extremistas que estavam em Charlottesville — como o Blacks Lives Matter. Eu imagino, além disso, os professores (socialistas) de história chorando pelos campos de concentração nazista, sem citar, por sua vez, os Gulags comunista; enfim, posso imaginar centenas de situações de contradição.
O que se postula aqui, por sua vez, não é a negação da multiplicidade de entendimentos que há em cada interpretação individual de determinadas matérias, nem a ausência de uma coerência interna quando se busca pontos de vistas diferentes de um mesmo objeto. Não estou aqui defendendo o dogmatismo e nem a univocidade de pensamentos. Na realidade, Aron já afirmava que a história humana é realizada no entremeio de um relativismo e um dogmatismo, a história é múltipla, porém, é também coesa e organizada. “As sociedades complexas parecem, ao mesmo tempo, coerentes e múltiplas: parte alguma se isola, conjunto algum constitui uma totalidade de significado univocamente definida” (ARON, 2016, p. 155). O que se critica nos marxistas são as contradições. Isto é: a ausência de coerência entre os pressupostos arrogados em seus discursos frente à conclusão que se verifica em seus atos. Por exemplo, como pedir a paz mundial tendo como meio para isso a ditadura? Como pregar a ausência de dogmas e regras morais universais, sendo que o pressuposto marxista advém de um dogma universal, a de que a luta de classes é o motor da história? Ainda que possam dizer que sejam meios para um fim longínquo — e que isso justificaria a tirania —, o que nos resta são os fatos concretos; o historiador deve analisar fatos e acontecimentos registrados e não intenções utópicas. Quando isso é levado a cabo, o fato que encontramos diante de nós é que ninguém chegou ao “comunismo pacífico e igualitário” dos contos marxistas, o que nos resta são as experiências do comunismo real, sanguinário, tirânico e absolutista. Enfim, não se ataca aqui a multiplicidade de entendimentos sobre determinadas matérias, mas a ausência de coerência que, logicamente falando, é a prova do erro; a não ser que já passamos a aceitar que o quente é frio e que 2+2 é 9.
Entre o absolutismo de suas crenças doutrinárias e um relativismo retórico que chega a ser enfadonho, os socialistas verborrageiam uma teoria política simplesmente impraticável. Hoje os socialistas são aqueles que chegam nos cristãos e os criticam por possuírem dogmas de fé, e, ao virarem as costas para esses, afirmam com ares de soberba acadêmica que se não concordarem com eles, todos, automaticamente, tornar-se-ão fascistas. Ou seja, combatem os dogmas cristãos com o espírito relativista, todavia, arrogando para si um absolutismo que os tornam capazes de imputarem sobre esses as chancelas de fascistas.
Uma esquerda que não possui coerência de ações, uma esquerda que não se importa com a coesão de suas políticas, não pode pedir para que suas ideias sejam levadas a sério e muito menos que nós a pratiquemos na realidade; o que importa a eles, por fim, é a obediência servil de um socialista ortodoxo e de uma feminista, unido, também, à maleabilidade retorica de um ecologista. Querem a mentalidade dúbia dentro de cada cérebro militante para que possam controlar facilmente suas militâncias não importando as lógicas de seus mandos e desmandos.
Para finalizar, faremos um exercício: pensem na situação dos venezuelanos e dos cubanos, pensem também nos discursos humanitários do PT sobre os miseráveis e famintos, pensem nos discursos do PSOL sobre o respeito à democracia e o Estado de direito; pois bem, pensando nisso, leiam a citação abaixo:
“Moralista contra o presente, o revolucionário é cínico na ação e se indigna contra as brutalidades policiais, as cadências inumanas de produção, a severidade dos tribunais burgueses, a execução de acusados cuja a culpa não foi demonstrada a ponto de eliminar todas as dúvidas. Nada, além da ‘humanização’ total, pode acalmar a sua sede de justiça. Mas quando esse mesmo revolucionário decide aderir a um partido tão implacável quanto ele contra a desordem estabelecida, eis que, em nome da revolução tudo o que até então era incansavelmente denunciado é perdoado”. (ARON, 2016, p. 167).
Eis a esquizofrenia socialista, eis a esquizofrenia política.
Referência:
ARON, Raymond. O ópio dos intelectuais, Três estrelas: São Paulo, 2016
DARYMPLE, Theodore. A vida na sarjeta, É realizações: São Paulo. 2015