Por Pedro Henrique Alves, publicado pelo Instituto Liberal
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Dessa forma, para Frye, a linguagem científica vai à poética e a poética à científica, gerando assim uma composição linguística cíclica dependente de ambos os pilares. Tal realidade linguística não é composta de um dualismo auto-excludente, mas sim duas camadas que vivem se ajustando e reajustando no indivíduo para uma melhor expressão da realidade, seja essa realidade expressa de maneira científica ou poética. Se um pilar é completamente excluído, todo o edifício da linguagem se encontra pronto para desmoronar.
Em suma: a linguagem científica tem o dever de nos mostrar como o mundo é sem prévias adjetivações ou balbúrdias sentimentalescas, a visão poética tem o dever de pensar e elaborar possibilidades de vivermos num mundo melhor e mais adequado aos anseios humanos. A visão analítica diz que a casa não possui cercas, um fato cru, observável e comprovável; a visão poética nos diz que uma cerca será útil e boa para os moradores da casa, e não só útil e boa como realizável e desejável. Sem a primeira não analisamos a realidade, e sem a segunda não avançamos na realidade.
As palestras se formatam, assim, num crescente estrutural; como um arquiteto que constrói um edifício, Frye constrói sua narrativa com o intuito de evidenciar, do porão à cobertura, tudo aquilo que envolve a imaginação, linguagem e a importância da literatura. A literatura aparece como consequência da imaginação livre; ela atua como um elo imaginativo entre todas as grandes literaturas já escritas: “Nenhuma sociedade humana é tão primitiva que não tenha alguma espécie de literatura” (FRYE, 2017, p. 33). Para Northrop, a literatura bebe de uma mesma fonte, a fonte da queda e da redenção. “A história da perda e reconquista da identidade é, ao meu ver, o arcabouço de toda a literatura” (FRYE, 2017, p. 48); com isso, todavia, afirma Frye:
“Não estou dizendo que não há nada de novo na literatura; estou dizendo que tudo é novo, mas também reconhecível como a mesma espécie de coisa que o velho, assim como um novo bebê é genuinamente um novo indivíduo, mas também um exemplo de algo muito comum, um ser humano, pertencente à mesma linhagem que o primeiro dos seres humanos” (FRYE, 2017, p. 38).
De maneira velada ele tenta mostrar que a imaginação literária transpõe a barreira do tempo, tornando assim os indivíduos herdeiros de um legado; a literatura é mais que uma mera diversão, é uma herança que requer cuidado, conhecimento e responsabilidade. O homem não podia voar, e por isso qualquer estória sobre tal temática era ficção e mitologias para os gregos, todavia, agora, voar não passa de uma realidade cotidiana para nós. “A literatura é um mundo que tentamos construir e acessar ao mesmo tempo” (2017, p. 64)
A grande lição do livro só se torna evidente — ainda que presente em todo corpo do texto — no final da obra, quando o autor mostra que a formação da imaginação emancipada é necessária para não nos tornarmos objetos de mentes e conceitos escravocratas. Jargões e sensos comuns linguísticos imbramam as pessoas numa linguagem superficial e pueril, não deixando que se desenvolva nelas uma linguagem analítica a fim de observar os fatos, e nem a linguagem poética, aquela que buscará mudar suas condições. Para Northrop a linguagem capaz e livre é a condição para o homem livre, a capacidade diminuta na linguagem impede que a imaginação se alastre e busque condições de superar aporias e elaborar soluções. Uma sociedade tacanha começa por uma imaginação literária também tacanha.
Tal compreensão de “linguagem” é tão urgente que esse pequeno livro poderá exercer sobre o leitor uma espécie calmaria numa crise ansiedade. Por vezes as pessoas percebem de relance os problemas e as inépcias que os cercam; veem como que por uma nuvem de fumaça os espectros fugidios dos fantasmas que os assombram. Entretanto, por não conseguirem elaborar em uma linguagem clara daquilo que seu ser quer expor, ficam reféns do engasgo linguístico que os enclausuram num silêncio barulhento. Isto é: tornam-se condenados a um silêncio que fala muito, todavia, que não fala substancialmente nada com qualidade. Por fim, para resolver problemas é necessário: 1) saber notá-los, 2) imaginar o mundo como ele deveria ser sem tais aporias, e, após isso, 3) elaborar uma linguagem para expor, problemas e soluções, à sociedade organizada. Somente após esse caminho é que estaremos prontos para construir soluções. Pessoas alienadas são incapazes de gerir a própria liberdade; homens que não sabem expressar os seus problemas são incapazes de gerir as próprias soluções.
“Não se é livre para ir e vir a menos que se tenha aprendido a andar, e não se é livre para tocar piano a menos que se pratique. Ninguém é capaz de manifestar liberdade de expressão a menos que saiba usar a linguagem, e este conhecimento não é uma dádiva: precisa ser aprendido e trabalhado” (FRYE, 2017, p. 128).
Tal livro é mais que meramente recomendado, é necessário!
Referência:
FRYE, Northrop. A imaginação educada. Campinas: Vide editorial, 2017