Por Roberto Ellery, publicado pelo Instituto Liberal
Um conceito fundamental que causa muita confusão nos liberais é o individualismo. O problema é que a palavra possui vários significados que são usados de formas distintas e foram incorporados ao pensamento liberal. Uma olhada no Aurélio deixa claro o problema:
Individualismo. [De individual + ismo] S. m. 1. A existência individual. 2. Fig. Sentimento, conduta, etc., egocêntricos, egocentrismo. 3. Filos. Doutrina ou atitude que considera o indivíduo como a realidade mais essencial ou como o valor mais elevado. 4. Filos. Doutrina que explica os fenômenos históricos ou sociais por meio da ação consciente de indivíduos. 5. Filos. Doutrina pela qual a sociedade deve visar, como fim único, ao bem dos indivíduos que a constituem.
Como podem ver são vários conceitos que, mesmo estando presentes no pensamento liberal, tem significados diferentes, isso gera muita confusão. É o caso de quem acredita que o liberal é um defensor do egoísmo por tomar o segundo sentido da palavra. Não que o egoísmo não tenha um papel fundamental no pensamento liberal, Smith já falava do padeiro que nos atendia ao buscar seus próprios interesses, o tema também está na Fabula das Abelhas de Mandeville (link aqui) e nem vou falar de Ayn Rand. Porém muitos autores liberais usam o terceiro e o quarto significado do termo, economistas em geral e estudiosos do pensamento austríaco devem estar familiarizados com o quarto significado, também conhecido como individualismo metodológico. É esse significado, muito mais que o de egoísmo, que justifica as maximizações de utilidade nos cursos de economia.
Apesar da relevância para o pensamento econômico não é do individualismo metodológico que pretendo tratar nesse artigo, meu interesse é o terceiro significado do termo. Aquele que coloca o indivíduo como valor mais elevado. Nesse sentido o termo individualismo aparece como antônimo de tribalismo ou coletivismo, não de altruísmo. Esse é o sentido usado por Karl Popper e que eu costumo usar quando me refiro ao individualismo, o que não é nenhuma surpresa dado que Popper é um dos pensadores liberais que mais me influenciam. Se alguém for a uma única obra de Popper recomendo que seja “Sociedade Aberta e seus Inimigos”, livro em que Popper explica bem esse significado de individualismo e mostra os riscos totalitários no pensamento coletivista. Fica a dica para quem quiser conhecer uma análise diferente de autores como Platão, Mill, Hegel e Marx.
Popper usa alguns exemplos de passagens marcantes que ilustram o conceito de individualismo como antônimo de tribalismo e não de altruísmo. O primeiro exemplo vem de ninguém menos que Jesus Cristo, insuspeito de ser egoísta. Repare no seguinte trecho em Mateus, 22, 34-40:
E os fariseus, ouvindo que ele fizera emudecer os saduceus, reuniram-se no mesmo lugar.E um deles, doutor da lei, interrogou-o para o experimentar, dizendo:Mestre, qual é o grande mandamento na lei?E Jesus disse-lhe: Amarás o Senhor teu Deus de todo o teu coração, e de toda a tua alma, e de todo o teu pensamento.Este é o primeiro e grande mandamento.E o segundo, semelhante a este, é: Amarás o teu próximo como a ti mesmo.Destes dois mandamentos dependem toda a lei e os profetas.”
Esse trecho normalmente é resumido como “Amar a Deus sobre todas as coisas e ao próximo como a ti mesmo”. Repare que Cristo não faz referência à tribo, o próximo, que deve ser amado como a você mesmo, é um indivíduo. Acima de você e dos outros indivíduos apenas Deus. Não há um lugar para tribo acima do indivíduo, a não ser que alguém considere que a tribo é a representação de Deus. Uma visão que me parece doentia do estado, mas que existe por aí. No sentido usado no Popper, que é o terceiro sentido listado no Aurélio, A lei do Senhor, tal como resumida por Cristo, é uma lei individualista. Melhor assim, seria estranho que Cristo colocasse a tribo, uma criação humana, acima do indivíduo, que afinal foi criado a imagem e semelhança de Deus.
Outra passagem usada por Popper para ilustrar o individualismo é um trecho de Ideologia Alemã (link aqui) de Karl Marx. No trecho um dos raros momentos em que Marx descreve a sociedade comunista lemos:
… ao passo que na sociedade comunista, na qual cada homem não tem um círculo exclusivo de atividade, mas se pode adestrar em todos os ramos que preferir, a sociedade regula a produção geral e, precisamente desse modo, torna possível que eu faça hoje uma coisa e amanhã outra, que cace de manhã, pesque de tarde, crie gado à tardinha, critique depois da ceia, tal como me aprouver, sem ter de me tornar caçador, pescador, pastor ou crítico.”
Note que no mundo idealizado por Marx a escolha do que fazer é determinada pelo indivíduo, Marx fala “tal como me aprouver” e não “tal como aprouver à tribo”. Como conciliar essa escolha individual com a ideia que “a sociedade regula a produção geral” é coisa que eu não sei dizer, tente perguntar a algum marxista. O que interessa aqui é que uma sociedade onde o indivíduo, e não a tribo, escolhe onde trabalhar é uma sociedade individualista. No mundo perfeito de Marx, contradições à parte, cada um escolhe o que fazer, em sociedades coletivistas é a tribo que escolhe o que cada um deve fazer.
Em uma sociedade coletivista a tribo escolhe se o indivíduo vais ser soldado, crítico literário ou médico de acordo com as necessidades da tribo, no mundo de Marx a escolha segue o que “aprouver” o indivíduo. Na lei da coletivista o indivíduo deve amar o estado mais que a ele mesmo ou ao próximo, é antiga lição de morrer pela pátria ou viver sem razão da qual falava Geraldo Vandré. Na lei dos profetas o indivíduo deve amar a Deus acima de tudo e ao próximo como a ele mesmo, não há nada sobre morrer pela pátria.
Espero ter ajudado a esclarecer a confusão no uso do termo individualismo, se não ajudei espero pelo menos ter deixado claro o sentido em que eu uso o termo individualismo. Eu uso o termo no terceiro sentido do Aurélio, o mesmo usado por Popper, Hayek e vários outros liberais ilustres. Considero que o indivíduo está acima da tribo, é uma visão radical, por exemplo, um utilitarista pode aceitar que se tome algo de um indivíduo em nome do bem comum, um individualista fica, no mínimo, incomodado com essa possibilidade.
Por fim um alerta a respeito das ideias e do mundo real. Como bem alertou Popper mesmo o utilitarismo liberal de Mill se levado ao extremo pode ser levado a um totalitarismo, lógica parecida vale para o individualismo. Como toda filosofia o individualismo deve ser mesclado com algum pragmatismo quando tratamos de temas aplicados.
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