Vejam essa notícia:
Quem pretende apreciar uma tainha assada – prato típico do inverno no litoral Sul do Brasil – deve saber que nesta temporada praticamente não haverá reposição dos peixes servidos à mesa: uma portaria do Ministério do Meio Ambiente estabeleceu um limite de captura de 3.417 toneladas em Santa Catarina, estado que concentra 80% da pesca industrial no País.
A captura da tainha ocorre entre maio e julho, quando os cardumes aproveitam as correntes de água fria e saem do estuário da Lagoa dos Patos, no Rio Grande do Sul, para reprodução e desova no litoral do Sul e Sudeste.
O estabelecimento de cotas de captura foi a forma encontrada pelo setor produtivo e pelo governo para evitar a pesca predatória. A espécie Mugil platanus já foi reconhecida como sobreexplorada em 2004 e quase ameaçada de extinção em 2013, segundo uma ação movida pelo Ministério Público Federal no Rio Grande do Sul. Em 2011, uma sentença da Justiça Federal determinou que a União deveria elaborar, implementar e cumprir um Plano de Gestão para a Pesca da Tainha.
Pela Portaria 24, de 15 de maio de 2018, a cota máxima para Santa Catarina foi dividida em 2.221 toneladas para a pesca industrial, por meio de cerco/traineira, e 1.196 toneladas para o emalhe anilhado. No sistema com emalhe anilhado, considerado semiprofissional, pequenas embarcações fazem o cerco aos cardumes e puxam as redes como se fossem uma tarrafa, mas não utilizam o sistema de arrasto das traineiras.
Pergunta: por que temos esse tipo de situação em relação à pesca, mas não à criação de gado? Refletir sobre essa questão é entender o que os economistas chamam de “tragédia dos comuns”, onde o direito de propriedade não é bem definido e, por conta disso, os incentivos são perversos no que diz respeito aos cuidados com a sustentabilidade da produção. Em linguagem mais clara, o que é de todos não é de ninguém.
Isso foi tema do meu livro Privatize Já, em que resgato as experiências de Jonas, o ingênuo, justamente sobre pescaria. Segue um longo trecho do capítulo em questão:
A pesca representa um dos casos mais típicos do que os economistas chamam de “tragédia dos comuns”. Quando temos recursos escassos, porém de livre acesso, a tendência é cada um abusar na exploração desses recursos. Não é difícil entender os motivos.
Imaginemos um lago farto em peixes desejados pelos consumidores. Só tem um detalhe: o lago é propriedade pública. Ou seja, qualquer um pode ir lá e pescar o quanto quiser. Naturalmente, cada pescador vai partir em busca da maior quantidade de peixes possível, incluindo os menores.
Ele não tem nenhum benefício em deixar para trás esses peixes, ou em racionar a pesca para garantir um estoque estável de peixes, preservando a capacidade de pesca futura. Se ele assim fizer, outro pescador terá o incentivo para pescar esses peixes excedentes, apropriando-se do lucro com a sua venda no mercado.
A tragédia ocorre justamente porque a propriedade é comum, mas o recurso em disputa é escasso. O mecanismo de incentivos quando isso ocorre é o mais cruel de todos. Cada agente, buscando maximizar seus ganhos de forma racional, vai agir de modo a tornar o resultado final irracional, ou prejudicial para todos.
Os economistas falam em “falácia da composição” para expressar esse resultado ineficiente mesmo quando cada um adota postura que parece racional e eficiente do ponto de vista individual. Um bom exemplo disso é um teatro. Se um indivíduo na plateia ficar de pé, ele estará maximizando sua vista do espetáculo. Mas se todos pensarem da mesma forma racional, o efeito geral será ruim para todo mundo, pois todos terão de ver a peça de pé, sem com isso obter melhor campo de visão dos atores no palco.
Como resolver esse dilema, se é que ele tem solução? Jonas talvez tenha a resposta. Jonas é o personagem de um livrinho escrito para um público mais jovem, chamado As Aventuras de Jonas, O Ingênuo, que conta as experiências do garoto Jonas numa ilha onde ele foi parar depois de uma tempestade à deriva. Por meio de perguntas objetivas feitas pelo ingênuo garoto, sinceramente interessado em aprender, as incoerências do modelo de governo na ilha vão ficando cada vez mais evidentes.
Em um dos casos, conversando com um pescador, a lição aprendida por Jonas pode ser muito útil para uma possível solução ao problema da pescaria, que vive diariamente essa tragédia dos comuns.
Ao tentar beber água de um lago, Jonas escuta a advertência de um pescador, para não beber aquela água contaminada. Os dois iniciam uma conversa, e o pescador conta para Jonas que o lago está poluído, e que os peixes que restaram são miúdos. Jonas quer saber por que as outras pessoas pegam o peixe do pescador e jogam lixo em seu lago. O garoto fica espantado, então, ao saber que o lago não é do pescador, mas de “todos”, assim como as florestas e rios.
Jonas passa a entender rapidamente a ideia de que aquilo que é de todos, na verdade não é de ninguém, não tem dono. O pescador explica: “Por que eu deveria cuidar dos peixes, já que a qualquer momento qualquer outra pessoa pode vir aqui e pescá-los? Se alguém mais pode pescar os peixes, ou poluir o lago com lixo, então lá se vai todo o meu esforço!”
O lago do livro era administrado pelo governo, pelo Conselho dos Lordes, e o curioso é que os amigos dos Lordes geralmente pescavam e poluíam à vontade. O pescador desabafa: “É como se o peixe diminuísse à medida que aumenta o que é pago ao administrador da pesca”.
Qual poderia ser a solução para este problema? A resposta está naquilo que o pescador contou a Jonas:
Pense numa coisa: eu bem que gostaria de ser o dono deste lago. Então eu me asseguraria de que os peixes seriam bem cuidados. Tomaria conta do lago, assim como o criador de gado que administra a fazenda do próximo vale. Eu criaria os peixes mais fortes e gordos, e pode apostar que não permitiria que roubassem peixes, ou que jogassem lixo no lago.
Em outras palavras, a solução seria o direito de propriedade privada, tal como ocorrem nas fazendas com gados, normalmente muito bem cuidados. Para os lagos, esta saída parece bastante simples até. Mas e para os oceanos? Como garantir direito de propriedade sobre os peixes no meio do mar?
Não é tarefa trivial. Mas pode ser feito. É o que mostrou a Islândia, pequeno país nórdico com cerca de 300 mil habitantes. Antes de praticamente cada cidadão achar que era um especulador financeiro nato, o país era um caso de sucesso econômico, atingindo inclusive a primeira colocação no ranking do Índice de Desenvolvimento Humano, calculado pela ONU.
A pesca sempre foi uma das mais importantes indústrias da nação. Só que o fenômeno da tragédia dos comuns afetaria drasticamente os estoques de peixe na Islândia, demandando alguma solução inovadora.
O caminho encontrado foi criar as cotas individuais transferíveis, que preservavam acesso limitado ao oceano, dando titularidade aos pescadores com base no histórico recente de captura de peixes. A partir de então, cada um poderia negociar tais cotas, alugando-as ou até as vendendo. Os mais eficientes ficariam com mais cotas, pois teriam melhores condições de pagar por elas.
O professor de economia de pesca, Rognvaldur Hannesson, explica em detalhes todo esse processo em seu livro The Privatization of the Oceans, incluindo ainda os casos da Nova Zelândia, Chile, Noruega, Austrália, Estados Unidos e Canadá. Cada um desses países adotou um sistema similar, ainda que com diferenças importantes. A ideia por trás de cada um dos modelos encontrados, todavia, sempre girava em torno do conceito de propriedade privada para o direito de pescar em determinado local.
O autor mostra que o processo de garantir os recursos escassos de pesca começou como uma tentativa dos estados ricos em peixes de afastar os intrusos de outros países. A demarcação dos limites marítimos até a costa foi motivo de intermináveis disputas internacionais. O acordo de 3 milhas prevaleceu por algum tempo, até ser substituído pelo mais extensivo pacto de 200 milhas, graças à iniciativa da Islândia, que tentava garantir seu acesso ao bacalhau.
Ainda assim várias dificuldades práticas permaneciam. Os cardumes não costumam respeitar os acordos traçados pelos humanos. A migração de espécies que nascem em um local e nadam para outro, por exemplo, era fator de grandes dúvidas. Dilemas à parte, a solução encontrada foi no sentido de preservar as 200 milhas da costa como direito exclusivo de cada país, selando pactos caso a caso quando espécies viviam em mais de uma nação.
Uma vez que o oceano passava a ser propriedade de um país, representado por seu estado, pensar sobre uma divisão desse direito dentro do país foi um passo natural. A Nova Zelândia foi um dos primeiros a adotar cotas individuais transferíveis. A Islândia foi outro país que mergulhou fundo nesse sentido. Os resultados foram nitidamente positivos, ainda que não livres de problemas ou oposição.
Cada detentor de uma cota dessas passa a ter o incentivo de reduzir ao máximo seus custos de operação, maximizando o valor de cada pescaria. O fato de a cota ser transferível, tratada como propriedade privada de fato, é de fundamental importância para o sucesso da medida. Dessa forma, os pescadores mais ineficientes podem vender suas cotas para outros, mais eficientes, garantindo que somente aqueles que demonstram maiores habilidades permaneçam no mercado.
Monitorar e aplicar os limites das cotas são as maiores dificuldades práticas desse sistema, assim como definir corretamente a quantidade máxima de pesca permitida, com base em critérios biológicos sobre o tamanho do estoque dos peixes. Uma vez que os pescadores passam a ter como ativo tais cotas, a produtividade da pesca no longo prazo se torna uma prioridade para eles, pois isso aumenta o valor presente da cota (o direito de pescar em uma região com cardume em franco declínio não vale muita coisa).
Houve maior concentração no setor nos países que adotaram as cotas individuais, o que era de se esperar. Alguns pescadores tiveram que sair do mercado e procurar trabalho em outros setores, deixando espaço para empresas maiores e mais produtivas. Os ganhos de escala se mostraram importantes para a sobrevivência.
Mas tal resultado não é negativo do ponto de vista da economia como um todo. Tornando-se mais rentável e preservando os estoques de peixes, a indústria da pesca podia contribuir mais para o crescimento sustentável desses países.
O fato de que alguns tiveram que perder no processo, particularmente os pequenos pescadores, suscitou forte oposição ao modelo. Além disso, fatores ideológicos foram responsáveis por duros ataques também. A ideia de privatizar os peixes e deixar a pesca se guiar pelos incentivos apenas do lucro era inaceitável para muitos.
Para acrescentar insulto à injúria, os ambientalistas se mostraram opositores ferrenhos das cotas privadas, pois muitos encaram a vida marítima quase como algo santificado, com valor por si própria, e não por sua utilidade gerada aos seres humanos. Um baiacu passa a ter quase tantos direitos quanto um bebê humano, por essa ótica.
Mas nada disso será de muito valor se os consumidores ficarem sem a opção de peixes em sua alimentação, ou se seu preço ficar proibitivo. Pescadores humildes podem despertar a compaixão de muitos, mas sem um mecanismo adequado de incentivos, eles mesmos serão os maiores prejudicados se o estoque de peixes desaparecer pelo excesso de pesca.
No fim do dia, o que importa é garantir a sobrevivência dos peixes e da indústria de pesca, que precisa ser rentável a ponto de atrair o interesse dos pescadores mais eficientes. O sistema de cotas individuais transferíveis se mostrou o mais adequado para essa finalidade. Peixes privados e abundantes ainda são melhores do que peixes comunitários e extintos, mesmo para ambientalistas radicais e socialistas que monopolizam a defesa dos mais pobres.
Na época do Orkut e do meu primeiro blog independente, tentei explicar esse fenômeno importante, que é tema de aula de doutorado em Chicago. Fui ridicularizado pela esquerda. Basta procurar ironias na internet sobre minha defesa da “privatização dos tubarões”. Mas a ironia maior é sempre de quem tem mais conhecimento sobre o assunto, e acha graça da ignorância alheia mascarada pela arrogância do “humor”.
Não há solução fácil para o problema. Mas refletir sobre ele é compreender uma lição essencial do liberalismo: a importância dos direitos de propriedade bem definidos como mecanismo mais eficiente de incentivos. Um empresário dono do poço de petróleo, por exemplo, terá mais motivo para explorar os recursos de forma racional e mirando no longo prazo, enquanto o estado terá incentivo de explorar como se não houvesse amanhã, de olho só nas próximas eleições. O que é de “todos” não é de ninguém.
Rodrigo Constantino