Por Lucas Zanoni, publicado pelo Instituto Liberal
Dentre a infinidade de áreas que o Brasil precisa aperfeiçoar na luta contra a corrupção, a proteção e o incentivo à denúncia e o aprimoramento do sistema de combate à lavagem de capitais se destacam. Duas matérias em que possuímos um flagrante atraso institucional, como será detalhado adiante, e que significariam um verdadeiro avanço na guerra contra o crime organizado de forma geral. Ambas bandeiras foram levantadas pelo atual Ministro da Justiça Sérgio Moro, mas, infelizmente, parecem perder espaço devido às atitudes do atual governo.
1. A proteção e o incentivo à denúncia
A chamada provisão qui tam é um instituto jurídico bastante antigo, com origens na legislação romana, que estabelecia incentivos para que cidadãos denunciassem atos ilegais, tendo direito a receber parte dos bens auferidos por uma ação judicial bem sucedida. Disseminado pela Europa durante o início da Idade Moderna (há previsões legais semelhantes nas Ordenações do Reino de Portugal e no Statute of York de 1318 na Inglaterra), esse mecanismo de combate à criminalidade ganhou força durante a guerra civil nos EUA, quando o False Claims Act foi promulgado, se tornando a principal lei de proteção do governo federal americano contra irregularidades. A lei autoriza que particulares ajuízem ações em nome do governo, recebendo uma recompensa de até trinta por cento da pena imposta ao réu, além do ressarcimento de despesas, honorários advocatícios e custas da ação. Entre os anos de 2009 e 2016, por exemplo, o valor recuperado por ações de whistleblowers foi de US$ 24 bilhões, e mais de US$ 4 bilhões foram pagos em “prêmios”.
Ao final do século XX e início do século XXI, surgiriam regulamentações para a proteção contra retaliações ao denunciante, além de seu prolongamento para o setor privado. Em 1989, os EUA promulgariam a Whistleblower Protection Act, uma lei federal de proteção ao servidores públicos que reportem violação de uma lei, regra ou regulamento; má gestão ou desperdício de fundos; abuso de autoridade; ou um perigo substancial e específico para a saúde ou segurança pública. Uma década mais tarde, após a ocorrência de escândalos corporativos e a disseminação de canais de denúncia no âmbito de programas de compliance, uma série de leis seriam criadas ao redor do mundo para proteger e incentivar a denúncia de ilícitos verificado no âmbito da relação de trabalho, tanto no setor público quanto no privado, destacando-se a Public Interest Disclosure Act/1998 (Reino Unido); a Protected Disclosure Act/2000 (Nova Zelândia); Sarbannes-Oxley Act/2002 (EUA); a Whistleblower Protection Act/2006 (Japão); e a Protection of Public Interest Whistleblowers/2011 (Coréia do Sul). Além disso, vários países da União Europeia tomaram medidas nos últimos anos para fortalecer os direitos de denunciantes e já se discute a criação de uma lei geral sobre o tema para todos os países.
O Brasil ainda se encontra muito defasado nessa matéria. As únicas normas que tratam do assunto no Brasil são a Constituição Federal e a Lei de Acesso à Informação que, legalmente, garantem a proteção do servidor público contra retaliações em caso de divulgação de atos ilegais. Não há, porém, incentivos pecuniários para tanto e a discricionariedade de alguns cargos de chefia também contribui para que alguns servidores tenham medo em realizar denúncias. Já no setor privado não há nenhum tipo de regulamentação sobre o assunto. Segundo os relatórios de revisão da implantação das “três Convenções Anticorrupção” (da OCDE , da OEA e da ONU – principais mecanismos internacionais para o aprimoramento do combate à corrupção do qual o Brasil faz parte, sendo responsáveis por uma série de mudanças legislativas que tivemos nos últimos anos), estamos bastante atrasados em relação à comunidade internacional nesse tema.
A compreensão de que o estabelecimento de um sistema de proteção e incentivos à denúncia é importante para o avanço do combate à criminalidade no país não passa ao largo dos especialistas e de algumas autoridades na área. Em 2015, o senador Aloysio Nunes havia apresentado o PLS nº 362/2015, propondo a regulação do tema, porém retirou a proposta sem apresentar nenhuma explicação, durante a crise institucional após os escândalo da Lava Jato. O tema também havia sido incluído no Pacote Anticorrupção em 2016, mas foi retirado na “reciclagem” imposta pelo Congresso. Naquele mesmo ano, a Associação dos Juízes Federais do Brasil (AJUFE) e a Estratégia Nacional de Combate à Corrupção e à Lavagem de Dinheiro (ENCCLA) haviam publicado manifestações em prol da urgência e necessidade de se legislar sobre a matéria. Enquanto isso, tramitava no Congresso o PL nº 2.808/2015, com propostas na contramão das práticas internacionais na área. Com a corrupção saindo do foco principal do debate político após o impeachment, teríamos que esperar que Sergio Moro assumisse o Ministério da Justiça para voltar a debater sobre o tema, quando o ministro incluiu o incentivo à denúncia em seu Pacote Anticrime.
2. Lavagem de dinheiro
No mundo contemporâneo, é praticamente impossível dissociar criminalidade do sistema financeiro. Do roubo de mercadorias ao tráfico de drogas, da corrupção ao financiamento do terrorismo, da sonegação fiscal à exploração humana, o crime organizado opera movimentando capitais, geralmente com o objetivo de lucro. Na medida em que os países o os mercados se integraram, a lavagem de dinheiro se tornou um dos principais problemas na coordenação para o combate a grupos transnacionais (como é o caso dos governantes corruptos e do PCC, por exemplo) e os sistemas anti-lavagem tem se tornado uma, senão a mais, importante ferramenta na investigação de uma miríade de crimes.
De maneira semelhante ao tema da proteção e do incentivo as denúncias, a ENCCLA e organizações internacionais (no caso da lavagem de dinheiro não apenas OCDE, OEA e ONU – aqui também nas convenções contra o narcotráfico e contra o crime organizado – mas também instituições como Banco Mundial, FMI, Grupo de Ação Financeira Internacional e o Grupo de Egmont) têm urgido para que o Brasil aperfeiçoe seus mecanismos antilavagem. Avançamos muito desde a Lei nº 9.613/1998, que marcou o início da recepção legislativa das normais internacionais na área, porém ainda há muito para ser feito.
Dentre os principais problemas apontados pelos especialistas na área, a falta de poder dos chamados órgãos de controle e os impedimentos para troca de informação entre agentes investigativos é um dos mais ressaltados, causando grande preocupação e até ceticismo de que tal cenário poderia impedir qualquer outro avanço na área. Profundo conhecedor do tema, Moro também não deixou passar em branco. Além de declarar várias vezes antes de assumir o ministério de que o combate à lavagem seria um tema central de sua gestão, uma das primeiras medidas adotadas pelo novo ministro foi dar maior poder ao COAF e integrá-lo à sua pasta, ação também barrada pelo Congresso há alguns meses.
3. Entre o discurso e a realidade
Apesar dos esforços do atual Ministro da Justiça em levantar duas pautas de extrema relevância para o combate à criminalidade do país, a realidade da gestão Bolsonaro pode significar em realidade um revés para as duas áreas. No caso da proteção ao denunciante o acidente se produz de forma mais sutil e envolve Moro diretamente: Greenwald tem sido perseguido pela população e, ao contrário do que prega a boa prática, não apenas teve proteção negada pelo Estado por apresentar supostas irregularidades (ainda que não consistentes) como acontece na maioria das democracias, mas também há suspeitas de que o Ministro tenha determinado a utilização do aparato burocrático para perseguir o jornalista. Institucionalmente não há conflito com a proposta contida no Pacote Anticrime, mas a atitude do governo pode contribuir para a desidratação da proposta.
Já em relação à lavagem de dinheiro, o clã Bolsonaro coloca em sério risco não apenas as propostas do atual ministro, mas toda a estrutura de investigação brasileira. Após todo o imbróglio do Caso Queiroz e do 01, que resultou na suspensão de mais de quatro mil inquéritos no Brasil, incluindo narcotraficantes e outras formas de crime organizado, o governo se limitou a declarar que concordava com a decisão de Dias Toffoli. Choca não apenas pelos efeitos perversos que o julgamento a ser realizado pela Suprema Corte pode ter para o combate à criminalidade no país e não apenas pelo fato dos políticos colocarem seus interesses pessoais acima dos interesses de Estado, duas realidades bastante comum no Brasil pré-Bolsonaro, mas impressiona porque o tiro deve sair pela culatra. O governo que mais prometia em matéria de combate à criminalidade pode trazer um dos maiores revezes dos últimos anos na área.
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ASSIS, Angelo Adriano Faria de; SANTOS, João Henrique dos; RAMOS, Frank Santos dos. A figura do Herege no Livro V das Ordenações Manuelinas e nas Ordenações Filipinas. Revista Justiça e História, v. 4, n. 7, 2005.
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Comissão de Peritos do MESISIC. Relatório referente à implementação na República Federativa do Brasil das disposições da Convenção selecionadas para serem analisadas na segunda rodada e sobre o acompanhamento das recomendações formuladas ao país na primeira rodada. Washington. 2008. Disponível
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Decreto nº 5.687/2006. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2004-2006/2006/decreto/d5687.htm
Na área antilavagem, destacam-se as seguintes ações para 2019: (I) restrição a saques em espécie, pagamentos em cheques e transferências a partir de contas destinatárias de recursos públicos; (II) padronização para acesso das instituições de controle, fiscalização e persecução aos bancos de dados e aos extratos bancários que envolvam recursos públicos; (III) prevenção e combate à lavagem de dinheiro por parte de agentes públicos mediante acompanhamento da evolução patrimonial e dos bens de uso; (IV) aprofundar estudos sobre utilização de ativos virtuais para fins de lavagem de dinheiro e financiamento de terrorismo, apresentando levantamento de boas práticas relacionadas com a investigação do delito em diversas esferas e eventual proposta de adequação normativa em matéria investigativa e de persecução penal; (V) diagnóstico sobre a qualidade, abrangência e tempestividade das informações prestadas pelas instituições financeiras às autoridades judiciárias, policiais e ministeriais via Sistema de Investigação de Movimentações Bancárias e sugerir melhorias; (VI) dar continuidade a ação de aperfeiçoamento das Polícias Civis na investigação de crimes de lavagem de dinheiro; (VII) integrar notários e registradores no combate e prevenção de lavagem de dinheiro; (VIII) propor alterações normativas e/ou melhorias de controles para evitar a utilização de empresas de fachada para a lavagem de dinheiro; (IX) elaborar diagnóstico sobre lavagem de dinheiro decorrente de crimes tributários.
Sobre o autor: Lucas Zanoni é estudante de História na FFLCH-USP, pesquisador na área de história fiscal e analista de compliance anticorrupção. Atualmente contribui com o The FCPA Blog, sendo responsável pelo acompanhamento da legislação brasileira de combate a crimes financeiros.