Por Carlos Andreazza, editor da Record
Não me aprofundarei no significado político e cultural da jabuticaba por meio da qual artistas populares se tornaram intelectuais, pensadores do Brasil. O fato é que Chico Buarque esteve novamente – terá alguma vez saído? – no centro do debate público brasileiro. Ele talvez não tenha culpa. Mas não será à toa. Quem mais poderia bordar de saudade a última – única – bandeira dos desesperados, os nostálgicos de uma ditadura contra a qual achar nova existência?
Refiro-me à banalização da palavra golpe, este coringa militante, fetiche da camaradagem nacional, refúgio derradeiro dos que buscam formas – direi românticas, porque sou um homem bom – de disfarçar, de camuflar a defesa de um corrompido Partido dos Trabalhadores.
Pois de outra coisa não se trata – a própria presidente da República dá o tom do delírio calculado: instrumentalizado em estandartes generosos contra o tal golpe, contra o impeachment e a favor da Constituição (que não subscreveram) e do Estado Democrático de Direito (de que muitos tomaram conhecimento ontem), tem-se, a rigor, a defesa do PT, de Dilma Rousseff, de Lula, de um projeto profissional de poder e, portanto, das barbaridades reveladas, por exemplo, na delação de Delcídio do Amaral.
Se existe desespero na origem do uso corrente e vulgar da palavra golpe (há um a cada esquina, de fazer corar as carolas alarmistas de 1964), existe também – sobretudo – método. Ao aplicar esse recurso, tão velho quanto eficiente, exerce-se controle social e exercita-se uma ferramenta de dominação-sedução pela memória, ainda que distorcida, papel para o qual Dilma Rousseff, ex-guerrilheira, é perfeita; um movimento que, agora pela difusão do medo, tenta restaurar e reservar para si um inimigo contra o qual encenar um herói – ocasião em que até o Chico Buarque político faria sentido.
Afinal, qual desinformado quer estar a favor – quer correr o risco de estar a favor – de um golpe de estado?
Mas o Brasil é outro. Felizmente.
Já lá se vão 52 anos. A desgraça de 1964 está morta e enterrada. (Os vivos estão no poder.) As forças armadas, sucateadas, não têm dinheiro sequer para o lanche dos recrutas. (O exército parece ser sindical, conforme indicam os R$ 35 bilhões arrombados da Petrobras.) O país tem instituições democráticas sólidas. (E nada houve até agora, na crise em curso, que escapasse dos trilhos da República.) A imprensa é livre. (E a que não é, no bolso do governo, tampouco é imprensa.) O Chico agora é o César. (Caso em que – oh! – ressinto-me do Buarque.) A juventude que vai às ruas e pede impeachment – dispositivo constitucional, registre-se, celebradíssimo quando contra Fernando Collor – nada deve ao regime militar e despreza a meia dúzia de cavalos que clama por intervenção militar. (Melhor seria que se prestasse atenção, no coração das manifestações populares, na interessante ascensão de um verdadeiro movimento liberal brasileiro.) E, no entanto, claro: golpe! (Botão que se aciona ao primeiro aperto, ao raiar da voz do contraditório: golpe!)
De quem? Para quem?
Onde está Carlos Lacerda? Será Michel Temer vice-presidente à revelia de Dilma Rousseff e de seu partido? Onde está Magalhães Pinto? E Eduardo Cunha, terá ascendido à condição de presidente da Câmara no governo de quem, anabolizado por integrar a base aliada corrompida de que gestão? Juscelino, onde está? É Renan um inimigo do partido? Cadê os malditos ianques? (Go home!)
Não se precisa refletir muito para concluir qual seria o único grupo organizado – organizadíssimo – capaz de dar um golpe hoje neste país. Não é decerto a Rede Globo. Certamente não a Editora Abril. Seguro é que nunca antes na história brasileira tantos bilhões – dinheiros públicos e progressistas, por óbvio – foram desviados para financiar, criativa e patrioticamente, a defesa do Estado Democrático de Direito.