Muitos leitores me perguntam o que quero dizer quando falo em “conservadores de boa estirpe”. O que seria isso? Não é tão simples definir uma linha divisória na direita. Há nacionalistas autoritários, saudosistas de um passado idealizado, reacionários radicais, elitistas aristocráticos, fanáticos religiosos, vários tipos que, definitivamente, não combinam com o conceito que tenho do conservadorismo mais admirável.
Tentei escrever um texto explicando melhor a postura desse conservadorismo que mais me atrai. Mas talvez seja ainda mais fácil citar nomes. E Michael Oakeshott é um dos que vêm à mente, sem dúvida. Foi um grande intelectual, humilde ao mesmo tempo em que gigante na ciência política. Sua humildade era aquela do tipo epistemológico, influenciada por Montaigne, Hume e outros. Martim Vasques da Cunha acaba de escrever um excelente ensaio sobre ele, que merece ser lido na íntegra. Abaixo, alguns trechos:
A “política racionalista” dos nossos dias, se podemos chamá-la assim, é uma extensão da “engenharia”, uma “política da perfeição e da uniformidade”, na qual a “erradicação” de qualquer falha ou lacuna torna-se a primeira regra do seu credo, dominando a mente de tal forma que a única coisa que sobra é “uma compreensível utopia”, um “perfeccionismo nos detalhes” e um completo desprezo pela dinâmica imprevisível da conduta humana.
[…]
A “atitude conservadora” seria “uma disposição típica de quem acredita ter algo a perder, algo que o tempo ensinou a amar” – e como é retratada no famoso trecho que hoje é citado sem que as pessoas entendam que se trata de um floreio irônico – “é preferir o familiar ao estranho, preferir o que já foi tentado a experimentar, o fato ao mistério, o concreto ao possível, o limitado ao infinito, o que está perto ao distante, o suficiente ao abundante, o conveniente ao perfeito, a risada momentânea à felicidade eterna”. O erro de leitura daqueles que se referem a esta descrição de Oakeshott está no fato de não perceberem que, logo depois, ele classificaria esse tipo de comportamento como o de alguém que não entenderia “os fenômenos da mudança e da inovação”. Seguindo este raciocínio surpreendente, o conservador seria incapaz de perceber o que fazer quando uma mudança se aproxima na sua vida, especialmente se ela envolve alguma inovação radical que tornaria tudo obsoleto. Ao contrário: como o próprio Oakeshott retruca logo em seguida, “ser conservador não é meramente ter aversão à mudança (o que pode ser uma idiossincrasia); também é uma maneira de nos acomodarmos a mudanças, uma necessidade que se impõe a todo homem. A mudança é sempre uma mudança à identidade, um símbolo de extinção. A identidade de um homem (ou de uma comunidade) não passa de um ensaio ininterrupto de contingências, cada uma à mercê das circunstâncias e com sua significância atrelada à familiaridade. Ela não é uma fortaleza para onde podemos nos retirar, e o único meio que temos de defendê-la (quer dizer, defender nós mesmos) contra as forças hostis da mudança é conduzi-la para a batalha no campo aberto de nossa experiência; jogando todo nosso peso no pé que se encontra temporariamente fincado, ao mesmo tempo cortando laços com qualquer familiaridade que não esteja em iminência de ameaça e com isso assimilando o que é novo sem nos tornarmos irreconhecíveis para nós mesmos”.
Em outras palavras: o conservador é, para Oakeshott, o único sujeito que tem a disposição de aceitar o estranho, o misterioso, o inusitado, o inesperado, o incerto, a surpresa, a alegria da tentativa e do erro, e que, por isso, é incapaz de viver uma ideologia que fascine o “anti-indivíduo” porque ele está preocupado com tudo aquilo que um “racionalista” quer evitar a qualquer custo. Dessa forma, é compreensível a hesitação que ele tinha quando tentava-se igualar a disposição conservadora com um comportamento que poderia ser interpretado como religioso, em especial quando se entrava na análise da política e da sociedade.
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Oakeshott rejeita a conexão entre o comportamento religioso e o conservadorismo porque ele está preocupado com dois outros perigos que, indiretamente, podem surgir na inusitada união dessas ações. Eles são, respectivamente, a recusa de se ter uma atitude de humildade diante da realidade complexa e, por isso, incompreensível para quem não tem os meios disponíveis de entendê-la (ou, pior, talvez ela seja apenas caos e desordem para o racionalista que queira apreendê-la na sua teoria simples e errada); e um desejo de querer interferir naquilo que jamais pode ser reduzido a um sistema linear, como parece ser o caso do fenômeno político, ainda mais numa sociedade intrincada como a europeia.
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Oakeshott desconfia de tudo que se apresente como definitivo, seja a religião ou o poder de comandar que queira substituí-la por meio das técnicas racionalistas. Neste aspecto, seu exemplo maior de filósofo sempre foi o francês Michel de Montaigne que, com seu saudável ceticismo sobre a falibilidade humana
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De acordo com os seus preceitos – que, se quisermos ser coerentes, também devem ser postos em dúvida, é claro –, o ofício de governar é algo que sempre deve ficar em “segundo plano” e, se for realizado, deve ser feito sempre tendo como meta o “prazer” desta função, jamais como algo imposto, sem uma meta determinada, seja para quem governa, muito menos para quem é governado.
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Ao contrário do que se imagina, este fundo “liberal” em Oakeshott parece ser coerente com a sua “disposição conservadora”. Afinal, podemos ver sua própria obra como a tentativa de ser uma “associação civil” em termos intelectuais, que existe em função do “prazer” desinteressado e não pela “meta dirigida”. Este seria, portanto, um dos motivos dele sintetizar, na visão de Gray, “uma variedade de compreensões aparentemente disparatadas – aristotélicas e ciceronianas, romanas e normandas, lockeanas e hegelianas – para dar conta dessa forma de associação humana – que aparece distintamente apenas na Europa medieval tardia e, nunca sem oposição, em qualquer dos Estados europeus modernos – na qual as pessoas vivem juntas, não sob a égide de qualquer fim ou hierarquia de fins comuns, mas, em vez disso, por efeito de sua subscrição a um corpo de regras não instrumentais por meio das quais elas podem (em sua variedade e objetivos conflitantes) coexistir em paz”.
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No fim, a fascinação (e a aceitação) da incerteza como a única regra na nossa humana, demasiada humana condição foi o eixo principal da filosofia idiossincrática de Michael Oakeshott. Em um mundo dominado pela revolta por todos os lados, da esquerda e da direita, este tipo de humildade, mesmo à beira do abismo de si mesmo, é uma lição que não deve ser esquecida sob qualquer circunstância.
Rodrigo Constantino
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