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Ocidentalismo: a mania de cuspir na própria cultura, a mais avançada, liberal e tolerante do mundo

Há uma mania por parte dos “intelectuais” ocidentais de esquerda: cuspir na própria cultura ocidental, “por acaso” a mais avançada, tolerante e liberal do mundo, aquela que garante a sua liberdade de expressão e a democracia inexistentes em boa parte do planeta. O hábito chega ao paroxismo quando um Noam Chomsky da vida consegue elogiar regimes tirânicos e condenar os Estados Unidos por serem a maior tirania do mundo, pois velada.

As origens do fenômeno são várias, e tentei abordar a questão em meu livro Esquerda Caviar. Acho que uma das principais é a alienação típica dos “intelectuais”, que olham com desprezo e desdém para o materialismo e a vulgaridade da “pequena-burguesia” sob o capitalismo e não suportam o que veem, desejando sua destruição. Há também, claro, a pura canalhice, pois costuma ser lucrativo cuspir no capitalismo dentro do capitalismo.

Se Edward Said, guru das esquerdas, ficou famoso ao cunhar o termo “orientalismo”, que seria a construção de um Oriente imaginário pelos ocidentais, mais correto hoje seria falar em um “ocidentalismo”, visão parida no próprio Ocidente que denigre sua imagem e cospe em tudo que a civilização ocidental construiu. Os males do mundo são culpa sempre do homem branco ocidental.

Em sua excelente coluna de hoje na Folha, Demétrio Magnoli fala do assunto, mostrando como certos “intelectuais” conseguem responsabilizar o próprio Ocidente pelo jihadismo, pelo terrorismo islâmico, transformando as vítimas em algozes. Demétrio citou o “frei” Betto e outros, mas poderia ter incluído Arnaldo Bloch também, que em texto publicado hoje no GLOBO faz exatamente isso: coloca a culpa do terror no Ocidente. Diz ele:

As raízes estão no colonialismo europeu e na política externa dos EUA no Oriente Médio, que plantou ali seus piores inimigos. Para pensar em raízes pode-se voltar mais no tempo e falar nas Cruzadas, a guerra santa cristã contra os muçulmanos, que provocou milhões de mortes e deu fim à Idade de Ouro, quando judeus e islamitas conviviam pacificamente na Península Ibérica. Pode-se voltar até Roma. Ou aos cafundós de Judas.

Um espanto! Todos viviam felizes até os malvados ocidentais colonialistas acabarem com essa linda paz. Os jihadistas do século XXI são fruto das Cruzadas! É muito ódio ao próprio legado ocidental, que permite ampla liberdade jamais vista no Oriente tão elogiado pelos “ocidentalistas”. Demétrio coloca essa turma em seu devido lugar:

Os ocidentalistas negam a existência de uma história não-ocidental. Na hora dos atentados do 11 de setembro de 2001, espalharam a fábula de que a Al Qaeda foi parida na maternidade da CIA. Diante dos atentados em Paris, limparam a cena do crime, apagando as digitais das organizações jihadistas. Os nomes da Al Qaeda no Iêmen e do Estado Islâmico não aparecem nas suas análises das carnificinas, atribuídas a pobres diabos oprimidos pelo Ocidente: “alguns radicais” (Frei Betto) ou meros “lobos solitários” (Arlene Clemesha) que não passam de “maconheiros cabeludos” (Tariq Ali).

Os ocidentalistas organizam sua narrativa em torno da verossimilhança e do silogismo, investindo na carência de informação histórica da opinião pública. Nas versões que difundem, a culpa pelos atentados recai sobre a guerra suja de George W. Bush (Ali), mesmo se a jihad começou antes dela, ou sobre o colonialismo francês na Argélia (Clemesha), mesmo se os jihadistas qualificam os nacionalistas argelinos como infiéis e blasfemos. A regra de ouro é descartar todos os fatos que não cabem no molde do “ocidentalismo”. Uma “moral dos fins”, típica de ideólogos, justifica a manipulação, a distorção e a pura mentira, que desempenham a função de “meios” incontornáveis.

Parasitas intelectuais, eis o que são segundo Demétrio. E ele está completamente certo. Para quem tiver interesse em se aprofundar mais no assunto, recomendo o livro Ocidentalismo, que resume muito bem em poucas páginas esse fenômeno. Abaixo, uma resenha que escrevi há alguns anos:

Ocidentalismo

Os professores Ian Buruma e Avishai Margalit escreveram um livro no qual cunharam o termo “ocidentalismo”, explicado como o retrato desumano do Ocidente pintado por seus inimigos. Nele, os autores tentam explicar os motivos do ódio que leva determinados grupos a declarar guerra ao estilo de vida ocidental e tudo que ele representa. A conclusão é que boa parte da culpa desse ressentimento originou-se no próprio Ocidente, através de certos pensadores e intelectuais.

A visão desumana do Ocidente reduz toda uma sociedade ou civilização a uma massa de parasitas sem alma, decadentes que vivem apenas para o prazer imediato. Quando essa visão de que os outros são menos humanos adquire força revolucionária, leva à destruição de seres humanos. As causas dessa imagem perversa possuem raízes históricas. Por trás dela, está a noção de que os homens desafiaram Deus, colocando-se como centro do universo e transformando suas relações em trocas impessoais ligadas apenas ao dinheiro. A cidade passa a ser vista como desumana, um zoológico de animais depravados, consumidos pela luxúria. Nas palavras dos autores, eis o resumo da visão ocidentalista da cidade, do capitalismo, e da ‘civilização-máquina’ ocidental: “uma prostituta sem alma como um autômato voraz”.

Os intelectuais ocidentais, com raras e nobres exceções, contribuíram muito para essa imagem. Entre as causas, pode estar o fato deles saberem que, em uma cultura comercial, o papel dos filósofos e dos literatos é, na melhor das hipóteses, marginal. Os temores e preconceitos afetam as idéias dos intelectuais urbanos, que se sentem deslocados num mundo de comércio em massa. Na tentativa de “reformar” os homens, como se apenas os intelectuais tivessem a sabedoria para conhecer o caminho da salvação e os verdadeiros interesses individuais, vários pensadores pariram idéias revolucionárias que derramaram oceanos de sangue. As massas foram cobaias desses cruéis experimentos.

Os exemplos são vastos. Os soldados do Khmer Vermelho, por exemplo, vinham de áreas miseráveis e eram analfabetos, mas os líderes do movimento que exterminou quase um terço da população do Camboja tinham estudado em Paris, sofrendo forte influência de Sartre e Marx. O próprio Pol-Pot era um desses. O objetivo era restaurar a pureza e a virtude do seu povo, e o meio usado foi o sistemático assassinato em massa. O mesmo ocorreu na “revolução cultural” de Mao Tse-Tung, na China, ou na revolução comunista dos bolcheviques.

As democracias liberais do Ocidente valorizam o indivíduo comum, e o livre comércio preserva justamente a busca da satisfação dos interesses particulares de cada um. Fica faltando, na visão dos ocidentalistas, o sacrifício e o heroísmo. O renascimento só pode vir através da destruição e do sacrifício humano, por esta ótica.

O piloto kamikaze, durante a Segunda Guerra, é o símbolo perfeito disso. O culto à morte no Japão vicejou em meio ao mais alto nível de sofisticação tecnológica, cultural e industrial. Suas raízes não podem ser encontradas na pobreza. Esses kamikazes se viam como intelectuais rebeldes, enfrentando a corrupção ocidental, o capitalismo egoísta, e superficialidade da cultura americana. O arquiteto do ataque a Pearl Harbor havia estudado em Harvard. Não é muito diferente da situação que encontramos hoje na Al Qaeda. Bin Laden, um milionário com acesso aos grandes pensadores ocidentais, recruta jovens de classe média, usando a mesma retórica dos kamikazes.

As sociedades liberais do Ocidente dão oportunidades de conquistas extraordinárias aos indivíduos, mas tais conquistas são individuais. Isso não pode satisfazer aqueles que desejam ver o heroísmo e glória como partes de um empreendimento coletivo. O fascismo, o comunismo e o nazismo atraíam justamente o homem medíocre, porque lhe dava um vislumbre de glória por associação, seja da raça, da classe ou da nação. Os autores explicam: “O auto-sacrifício por uma causa nobre, por um mundo ideal, livre da cobiça humana e da injustiça, é o caminho para o homem comum sentir-se heróico”. O liberalismo ocidental, com sua natureza anti-heróica, passa a ser o grande inimigo dos radicais coletivistas.  

Na conclusão do livro, os autores defendem a idéia de que o combate a este ocidentalismo, que prega a destruição dos valores seculares ocidentais, não está no uso do mesmo veneno dos inimigos da sociedade aberta, mas sim nos próprios valores que fizeram do Ocidente uma civilização mais rica e livre. Eles finalizam: “Não podemos permitir o fechamento de nossas sociedades como uma forma de defesa contra aquelas que se fecharam; do contrário, seríamos todos ocidentalistas e não haveria nada mais a defender”.

Rodrigo Constantino

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