Por Lucas Berlanza, publicado pelo Instituto Liberal
Retirei da estante por esses dias uma obra prefaciada por ninguém menos que o célebre sociólogo Gilberto Freyre em 1979: Ocidente traído – A Sociedade em crise, de autoria de Jorge Boaventura (1921-2005). O exemplar é da época, obtido diretamente com a editora da Biblioteca do Exército; o autor foi professor da UFRJ, membro da Divisão de Assuntos Políticos da Escola Superior de Guerra, assessor e chefe da Divisão de Estudos Sociais do Colégio Interamericano em Washington e, durante o regime militar, foi fundador do Movimento Brasileiro de Alfabetização (MOBRAL).
A obra de Jorge Boaventura é um interessante documento histórico sobre a maneira por que certas questões que hoje são intensamente discutidas por liberais e conservadores eram tratadas na cabeça de um autor brasileiro dos anos 70. Seu trabalho tem dois grandes méritos: o primeiro é o reconhecimento das virtudes do Ocidente e de que ele se encontra acuado por forças internas – e, diríamos, externas – que procuram desmoralizá-lo e corroê-lo, propositadamente, e que, sendo essa a grande crise do nosso tempo, é preciso atentar também para ela no universo cultural – e não apenas se ater a contendas economicistas. O segundo é que, partindo desse princípio, ele promove uma análise meticulosa do pensamento marxista, desmascarando, para nossa surpresa, algumas alegações de pensadores dessa linha que fazem comparações bastante especiosas entre seus pensares sociais e supostas ilações extraídas das ciências químicas ou físicas.
No entanto, o trabalho a meus olhos segue, vale repetir, muito válido. Boaventura faz uma sensata distinção entre “não apenas aceitar, como aspirar ardentemente ao aperfeiçoamento e ao progresso” e “partir do postulado, quase sempre bem oculto da percepção popular, de que para alcançá-los só existem os caminhos apontados pelo Materialismo Dialético ou pelo Materialismo não racionalizado, mas puramente instintivo e sensual, que é disseminado entre nós através de coisas que, quase invariavelmente, levam os rótulos, já citados, de ‘avanço’, ‘modernismo’ ou ‘progresso’”. Já aponta para os riscos do fortalecimento de entidades e organizações supranacionais de perturbar as soberanias nacionais, questão que mais do que nunca ganha repercussão agora, em tempos de Trump e Brexit.
A parte mais importante e que efetivamente me atrai é o desmonte do Marxismo, por sua originalidade. Há, é claro, a contestação da noção de mais-valia, bem como da ideia do valor-trabalho, segundo a qual o valor dos produtos se define em função do trabalho despendido para produzí-los – o que despreza a subjetividade na apreciação desses valores. Boaventura traz do professor J.C. Fairbanks, mestre paulista de Economia, a curiosa analogia de uma serraria que, ao longo de sucessivos trabalhos, transforma um pé de imbuia em mesa, que foi, porém, ao final do processo, prejudicada por obra de um operário sabotador. Ora, esse operário acrescentou trabalho ao ciclo, mas o valor da mesa diminuiu.
Porém, o diferencial é que o autor não se atém a isso; ele disseca alegações pseudocientíficas de autores marxistas, e tal tarefa toma a maior parte do livro. É incrível como, em sua ânsia de comprovarem que a dialética materialista de Marx elucida todo o processo de desenvolvimento histórico e natural, esses autores enxergaram em movimentos moleculares ou fenômenos da natureza aplicações rigorosamente perfeitas dessa dialética; diante de suas engenhosas teses desmontadas, “forçam” os argumentos para que a realidade se encaixe ao seu edifício doutrinário delirante. Isso era parte integrante da arrogância de Marx: a ideia de que, apoiando-se na natureza, ele podia prever minuciosamente o rumo do desenvolvimento das sociedades como que num esquema matemático, movido pela espúria ideia da luta de classes.
Por si sós, essas análises, em linguagem bastante clara e objetiva, já valem a leitura desse registro do pensamento político brasileiro. Vale a pena!
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