Uma das leituras nessas férias foi Facial Justice, que já comentei aqui. Outra foi o pequeno livro da estratégia de como derrotar o PT, também já comentado aqui. Mas o melhor, do ponto de vista do prazer literário, foi mesmo Amsterdam, de Ian McEwan. O romance do escritor inglês mescla humor com temas ligados à amizade, à moral e à natureza humana.
Tudo começa no enterro de Molly, quando dois amigos e ex-amantes da falecida se encontram e travam uma conversa. O que se segue é uma espécie de disputa masculina ligada à sexualidade e à virilidade, testando ao limite a velha amizade. Mas esse não é o meu foco aqui. Gostaria apenas de destacar duas passagens do livro, aparentemente desconexas, mas que atacam, pela voz do narrador, o estrago causado pelo welfare state britânico:
Quão prósperos, quão influentes, como tinham todos florescido sob um governo que desprezavam havia quase dezessete anos! Falando da minha geração. Tanta energia, tanta sorte. Amamentados pelo Estado no imediato pós-guerra e depois sustentados pela prosperidade inocente e incerta de seus pais, até chegar à maturidade numa era de pleno emprego, novas universidades, belos livros de bolso, a idade de ouro do rock & roll, ideais passíveis de serem concretizados. Quando a escada desabou sob seus pés, quando o Estado parou de lhes dar de mamar e se tornou esta mãe rabugenta, eles já estavam s salvo, consolidados, prontos a se transformarem em formadores de opinião, de gostos ou de fortunas. (pag. 19)
[…]
Ao cruzar a ponte, se recordou de como Amsterdam era uma cidade calma e civilizada. Fez um longo desvio para oeste a fim de caminhar pela Brouwergracht. Sua mala era bem leve. Que reconfortante, ter um canal correndo pelo meio da rua! Que lugar tolerante, liberal e maduro: os belos armazéns de tijolos e vigas de madeira esculpida convertidos em apartamentos de bom gosto, as modestas pontes de Van Gogh, a discreta mobília urbana, os holandeses inteligentes e de aparência amigável montados nas bicicletas com seus prudentes filhos sentados atrás. Até os lojistas pareciam professores e os varredores de rua, músicos de jazz. Nunca existiu uma cidade organizada mais racionalmente. (pag. 162)
Exageros à parte, até porque já estive em Amsterdam e, apesar de ser realmente um charme, tem lá seus graves problemas, e levando em conta a ironia, proposital ou não, de que tanta racionalidade foi palco do desfecho bastante irracional da trama (não vou estragar a surpresa de quem não leu ainda), o fato é que fica no ar uma crítica velada ao modelo inglês e à geração mimada do pós-guerra, que teve de tudo e não aprendeu a valorizar nada, gozando das benesses “gratuitas” do Estado “papai”.
Artistas e jornalistas “formadores de opinião” paridos diretamente da afluência possível pelo trabalho duro de seus antecessores, mas que desprezam justamente aquilo que torna suas vidas fáceis viáveis. São como crianças mimadas que aprenderam a bater o pé no chão e demandar, como direitos inalienáveis, o pronto atendimento de seus desejos. Parece ou não com a nossa classe artística, acostumada a mamar nas tetas estatais e depois cuspir no capitalismo e na burguesia que os sustenta?
Rodrigo Constantino