A fala infeliz de Bolsonaro sobre o pai de Bachelet reabriu feridas, mereceu respostas duras, como a do presidente chileno, e despertou um misto de revolta e vergonha nos brasileiros decentes. Mas serviu também para resgatar o debate sobre o contexto da Guerra Fria na América Latina.
O revisionismo histórico pinta os comunistas daquele tempo como democratas que enfrentaram ditaduras, sendo que eram eles mesmos as maiores ameaças ditatoriais, e basta ver o resultado onde venceram. Esse foi o foco do meu destaque no programa 3em1 desta quarta:
Aproveitei a ocasião para publicar um texto antigo em que explico o contexto daquela época, o que o “democrata” Allende vinha fazendo com o Chile, e como isso gerou Pinochet como reação. Segue um trecho:
O Partido Comunista Chileno era o mais antigo da América do Sul, e sempre foi altamente obediente ao Kremlin. O partido fundado por Salvador Allende era também declaradamente marxista. Em 1967, o seu Partido Socialista deu a seguinte declaração: “O Partido Socialista como uma organização Marxista-Leninista propõe a tomada do poder como objetivo estratégico a ser conquistado por esta geração, para estabelecer um estado revolucionário que irá libertar o Chile da dependência econômica e cultural e iniciar o processo do socialismo. Violência revolucionária será inevitável e legítima. Constitui o único caminho para se chegar ao poder político e econômico. A revolução socialista poderá ser consolidada apenas destruindo-se as estruturas burocráticas e militares do estado burguês.”
O MIR, movimento revolucionário de esquerda similar as Farc e ao MST, era um corpo militar que defendia a tomada do poder pelos comunistas e socialistas. O sobrinho de Allende, Andres Pascal Allende, era um dos líderes de tal movimento. Outro pilar de sustentação das bases revolucionárias estava na Igreja Católica e sua teologia liberacionista, que acreditava na militância política como único meio de transmitir a mensagem divina. Com esse conjunto de forças dando apoio, e mais promessas de respeito à Constituição que se mostraram mentirosas depois, em 1970 era eleito Salvador Allende para presidente. Em 1971, em uma entrevista, o novo presidente já deixava claro suas intenções, ao dizer que “nós precisamos expropriar os meios de produção que ainda estão em mãos privadas”. Disse também que “nosso objetivo é o socialismo marxista total e científico”.
Allende venceu as eleições com 36% dos votos, o que estava longe de ser considerado um maciço apoio popular. O primeiro aspecto de seu programa de governo foi um assalto às propriedades privadas agrícolas, na medida conhecida como “tomas”. As expropriações eram carregadas de violência, por bandos armados, normalmente membros do MIR. Várias vítimas foram assassinadas, e alguns morreram de ataques do coração ou se suicidaram. Entre novembro de 1970 e abril de 1972, quase 2 mil fazendas foram tomadas por bandos armados.
Em seguida, Allende iniciou um programa de nacionalização de diversos setores da economia, como mineração e têxtil. Seu governo utilizou pequenas brechas na lei para infernizar a vida das empresas, e conseguir assim expulsar o capital estrangeiro do país. A liberdade de expressão também foi fortemente atacada, como em todos os países socialistas. Allende chegou a afirmar que “coisas são boas ou ruins dependendo se elas nos trazem para mais perto ou longe do poder”. Seu governo atuou direta e indiretamente contra jornais e estações de rádio não socialistas.
Foi criada uma instituição bizarra conhecida como “Corte do Povo”, em que juízes não treinados, mas ligados às organizações de esquerda, eram indicados. Seus poderes eram amplos, e batiam de frente com as leis já estabelecidas. Além disso, Allende criou, em 1971, sua própria Guarda Pessoal, a GAP, fortemente armada.
Todas essas medidas inconstitucionais, num país que respeitava sua Constituição desde 1925, fizeram com que o governo de Allende entrasse em conflito com a Suprema Corte. Vários casos eram questionados na justiça, mas Allende simplesmente ignorava as decisões da Corte. Ele chegou a dar a seguinte declaração em rede nacional: “Num período de revolução, a força política tem o direito de decidir em última instância se as decisões do judiciário se enquadram ou não nos objetivos e necessidades históricas de transformação da sociedade. Conseqüentemente, cabe ao Executivo o direito de decidir seguir ou não os julgamentos do judiciário”.
[…]
A crise econômica se alastrava de maneira assustadora no Chile de Allende. A hiperinflação atingiu mais de 500%, faltavam produtos nas prateleiras e o desemprego crescia rapidamente. No meio desse caos econômico, Carlos Matus, um dos ministros de Allende, disse que “o que é uma crise para outros representa uma solução para nós”. O único setor que prosperou durante os anos de Allende foi o paralelo, o mercado negro. Assim como na URSS, a nomenklatura chilena, composta de pessoas ligadas ao governo e influentes, enriqueceu por meio da importação de produtos escassos no Chile. O dólar, que no mercado livre da era pré-Allende valia 20 escudos, atingiu 2.500 escudos em agosto de 1973. A produção agrícola caíra 23% e a mineral uns 30%. No Chile de Allende, reinava o caos econômico e social, fruto do total desrespeito à ordem.
Pois bem: o socialista Allende estava prestes a destruir seu país, como Chávez fez décadas depois na Venezuela, ainda que “eleito democraticamente”. Diante desse fato, um leitor questionou: por que todos os esquerdistas dispostos a fazerem uma ditadura são derrubados por militares truculentos, e não por liberais moderados? É uma pergunta legítima. Podemos pensar em outros casos, como Alvaro Uribe “linha dura” na Colômbia, contra os terroristas das Farc.
Eis minha resposta: porque para combater psicopatas é preciso gente meio psicopata e amoral também. O que me remete à minha coluna do último fim de semana em Zero Hora, justamente sobre a figura do “herói trágico”, tendo como base o presidente Trump. Segue:
Muitos consideram Trump uma ameaça às instituições, mas uma teoria alternativa é que ele está mais para um sintoma do seu enfraquecimento. É justamente porque boa parte do povo perdeu a confiança nos políticos, acadêmicos e mídia que Trump foi eleito em primeiro lugar. Ele representa o outsider que veio abalar o sistema, drenar o pântano de Washington, como seu slogan dizia.
O historiador Victor Davis Hanson, em The Case for Trump, fala da figura do herói trágico, bebendo dos clássicos como Sófocles e Homero. Esses personagens representariam, assim como nos filmes modernos de faroeste, aquelas figuras que não são agradáveis, tampouco intrinsicamente nobres, mas que aparecem para desafiar os que representam uma ameaça ainda maior à sociedade.
Eles são percebidos como perigosos, costumam se preocupar mais com suas tribos do que com a cidade, demonstram lealdade pessoal, não espírito republicano. O que os tornam trágicos e heroicos ao mesmo tempo é seu conhecimento de que a expressão natural de suas personas pode levar apenas à própria destruição ou ao ostracismo na civilização que pretendem proteger. Há algo fatalista em seu caráter: não conseguem mudar, devido à megalomania ou visão absolutista da experiência humana.
Os heróis trágicos não necessariamente querem ser heroicos. Suas motivações podem ser egoístas, autocentradas e surgir por um desejo pessoal de vingança ou busca por adulação. Eles geram desconforto enquanto estão por perto, e podem ser reconhecidos somente quando seguramente afastados e seus feitos podem ser atribuídos a outros. Mas seu comportamento pouco civilizado pode por um período salvar a civilização.
São, enfim, aqueles com coragem suficiente e ausência de freio moral para fazer o “trabalho sujo” que precisa ser feito. Pensemos num bando de arruaceiros que chega numa cidade cujo xerife, certinho demais, mostra-se incapaz de enfrentar. Aquele que só por acidente do destino não é parte do bando tem o perfil para derrota-lo, agindo à margem da lei. É o herói de “Fauda”, a série israelense sobre terrorismo.
Sim, eles são perigosos e podem ameaçar as instituições. Mas podem ser a única salvação dessas instituições quando outros representam ameaça ainda maior.
Ou seja, para fazer o “trabalho sujo”, precisamos de alguém mais sujo mesmo, não de um “limpinho”, como alguns reacionários gostam de chamar os liberais. Ou alguém acha que, no estágio avançado da tirania venezuelana, será possível derrubar Maduro com palavras e discursos democráticos?
Dito isso, fica a pergunta incômoda: por que, depois, esses truculentos instauram ditaduras indefensáveis que destroem as liberdades individuais? Ou seja, eles surgem para impedir um mal maior, mas acabam produzindo muito mal também, o que é inegável. A resposta talvez seja essa: porque recebem o apoio de anticomunistas que ignoram os riscos do autoritarismo truculento, enquanto detonam liberais moderados, os únicos capazes de evitar os excessos dessa “direita” reacionária.
Os “heróis trágicos” surgem em cena, cumprem sua missão, mas precisam sair logo de cena também. Se vão ficando, deixam de ser heróis e se tornam vilões. E ninguém mais vai lembrar do mérito em suas ações iniciais.
PS: O risco evidente, claro, é os truculentos reacionários passarem a enxergar iminente ameaça comunista por todo canto, para justificar suas ações autoritárias. Assim, é possível que mesmo após a derrocada do PT, com um governo Bolsonaro em curso, essa turma veja em Doria ou Maia “terríveis agentes do Foro de SP”, para terem uma justificativa “moral” para suas ações imorais.
Rodrigo Constantino
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