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Os intelectuais, a cracolândia e o espírito do capitalismo
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Por Gustavo Nogy, publicado pelo Instituto Liberal

Eu, que podia estar matando, que podia estar roubando, fui ler a Folha de S. Paulo, jornal a serviço do Brasil. (Ê, Brasil!) Mas não foi de propósito: procurava por notícias do meu time (perdeu de novo) e terminei lendo o seguinte:

Dependentes de crack confrontam valores mais caros aos paulistanos.

Que o paulistano é o único tipo de quem se pode falar mal sem medo de ser acusado de racista, bairrista, satanista, brizolista, isso todo mundo sabe. Falar mal de nordestino não pode; falar mal de paulistano pode. Falar mal de alienígena não pode; falar mal de paulistano pode. De paulistano rico, então, imagina: tá tranquilo, tá favorável.

Acreditei que a manchete berrava coisa que o texto não dizia. Entendo que todo mundo quer vender jornal, e que para vender jornal às vezes é preciso enganar um pouquinho o leitor, mas não é bem esse o caso.

Trata-se de uma pesquisa do Datafolha sobre o que pensam os paulistanos e o que a cracolândia tem que ver com isso. De acordo com os analistas, os paulistanos só pensam naquilo: trabalho, trabalho, trabalho. Nas horas vagas: família, estudos, comida gourmet. Por isso, os usuários de crack, aos olhos dos paulistanos, personificam o extremo desse gradiente de exclusão, a antítese do que enxergam e valorizam sobre si. A taxa de desempregados entre os viciados é 18 vezes maior que a verificada na população.

Os paulistanos têm certos valores (trabalho, trabalho, trabalho) e, como esses valores não são exatamente os mesmos dos viciados em crack, o “DNA paulistano” parece não corresponder ao “DNA dos usuários”. O santo de um não bate com o diabo do outro. Como se estivéssemos falando de valores que se pudessem comparar: os valores do trabalho (credo) de um lado; os valores do crack (tá tranquilo, tá favorável) de outro.

Como se fossem opções válidas, estilos de vida alternativos, vocações distintas: este se esfalfa numa empresa; aquele se entope de estupefacientes. Ainda que com toda boa vontade com que se queira julgar a vida alheia, não me parece que a vida de quem é viciado seja exatamente uma vida que se deseje para os netos.

(Para o inferno com os netos, que isso são valores paulistanos!)

Concordar ou discordar das medidas tomadas pelo poder público é possível. Não sei se a internação compulsória é a única – ou melhor – saída, mas sei que o inferno onde vivem os usuários não têm muitas saídas. Se o Estado deve ter poderes para prender os viciados numa clínica é algo que se pode questionar, mas que eles já estão encarcerados dentro dum calabouço psíquico, moral e físico, estão. A dependência química é doença terrível (auto infligida, registre-se), e o sofrimento e a solidão de quem sobrevive na cracolândia deveriam sugerir pudores (intelectuais, morais) em quem se dispõe a pesquisar o fenômeno.

E nem mesmo é preciso ser um fanático da ética do trabalho e dos valores burgueses para considerar que nossos amigos marginais e marginalizados não praticam propriamente o ócio criativo. Fazer sociologia barata, discursar sobre violência simbólica, romantizar abortos, estupros, tráfico, prostituição, roubos, espancamentos, homicídios e vidas corroídas pelo crack, como se tudo se resumisse à versão mais rasteira de um Foucault redivivo, mal lido e mal compreendido, já é desonestidade demais.

Paulistanos à parte, a cracolância pode ser tudo – campo de batalha ideológico, palco de representações políticas e teatrais –, mas não é, nunca será, uma colorida Disneylândia.

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