Ainda em minhas “quase férias”, e fora do país, sobra menos tempo para escrever no blog. O que me leva a tentar ser o mais sucinto possível (tempo é dinheiro, e quando medido em dólares, especialmente agora que a moeda americana só sobe em relação ao real, tempo é muito dinheiro). Por isso esse texto aparentemente sem pé nem cabeça, reunindo vários temas em um só lugar. Nele, tentarei aglutinar duas colunas de hoje em jornais diferentes e mais uma reportagem, que falam de assuntos aparentemente desconexos, mas que, na realidade, possuem um elo comum, em minha opinião.
Começo pelo excelente texto, para não variar, de Luiz Felipe Pondé na Folha. O filósofo ataca o narcisismo da nova geração, aquela desapegada, “bem resolvida”, sem carência afetiva alguma, que não sente ciúmes e sequer sofre com uma separação conjugal. São leves, sempre felizes, postando fotos sorridentes nas redes sociais e sem as angústias milenares que atormentam os seres mais fracos, os reles mortais que alimentam inveja dos outros, que apostam no amor e sofrem com suas inevitáveis decepções. Diz Pondé:
Esta cultura, baseada no fracasso do investimento na prole e em vínculos duradouros, cai bem num mundo de gente bem resolvida. Existem até psicoterapeutas e psicanalistas que começam a abraçar a causa da cultura do narcisismo afirmando que narcisistas são melhor adaptados ao mundo contemporâneo porque não sofrem dos sofrimentos imaginários dos neuróticos que idealizam o amor.
Isso mesmo, um desses dias a psicanálise, que tanto resistiu às baboseiras do século 20, tombará sob o peso do mercado do narcisismo.
O mercado do narcisismo, além de investir em apartamentos singles com um parque de diversão na área social, vende, basicamente, estilos de vida e modas de comportamentos. Essas modas se concentram no cotidiano. Alimentação, lazer, trabalhos sem muito vínculo, relacionamentos solúveis na busca de autoestima.
Ah, tudo pela autoestima! Desde cedo esse “novo jovem” escuta que é especial, que basta repetir que é o máximo que assim será, tudo de acordo com os manuais de autoajuda e protegido do bullying. Ele não pode sofrer, pois a era do hedonismo não tolera isso. É a geração “mimimi”, acostumada a confundir seus desejos com direitos, e a levar a vida de forma superficial, sem muitos laços profundos, com “pouca bagagem”, como o personagem de George Clooney em “Amor sem escalas”.
Sem afetos externos que possam produzir sofrimento, apenas com afetos autorreferenciais. “Todo mundo muito bonitinho na fita, se roendo por dentro, mas vendendo a pose de que é uma geração de evoluídos”, segundo Pondé. Se você muda a comida, a forma de se vestir e o transporte utilizado, ou seja, se você é um descolado que come comida orgânica “consciente” e vai de “bike” para o trabalho, então você não precisa passar pelos sofrimentos desnecessários que produziram as tragédias teatrais do passado.
E com tal postura os “novos jovens” querem menos filhos, pois filho demanda investimento de longo prazo, muita dedicação e esforço, envolvimento emocional forte, tudo aquilo que assusta a turma “bem resolvida” que leva a vida de forma mais light. Caso tenham filhos, eles não precisam mais se apegar tanto ao relacionamento como antes, não devem valorizar o núcleo familiar, pois gente moderna e “bem resolvida” sabe que tanto faz a configuração familiar, pois o que importa é cada um ser educado dessa forma “liberal” e desapegada, individualista ao extremo e hedonista. O que vale é o prazer do “aqui e agora”, pois no longo prazo estaremos todos mortos, e afinal, vivemos para o curto prazo. Carpe diem!
O exemplo dessa conduta livre, leve e solta dado por Pondé foi o da separação da atriz Gwyneth Paltrow e seu ex-marido do Coldplay, que deram declarações nas redes sociais de que “agora” a família deles estava melhor e que eles não sofreram com o fim do casamento. Quando a dissolução familiar é vista com tanta naturalidade pela elite, o estrago é limitado. Mas quando a ideia em si começa a se disseminar em ambientes mais populares, como nas favelas e comunidades da periferia, o estrago pode ser bem maior, como mostra Charles Murray em Coming Apart.
Murray compara estatísticas da classe alta e de uma comunidade pobre nos Estados Unidos, mostrando como se criou uma verdadeira bolha que separa ambos os estilos de vida. O que num ambiente pode ser “bonitinho”, “moderno”, pode representar a catástrofe no outro. O psiquiatra britânico Theodore Dalrymple também costuma mostrar em seus livros os efeitos perversos das teorias das elites na vida prática dos mais pobres. São esses que acabam pagando um preço mais alto pelo “progressismo” dos “bem resolvidos” e seu narcisismo hedonista.
O que me remete ao segundo texto, de Carlos Alberto Di Franco, justamente sobre a importância do núcleo familiar na vida dos mais jovens. Os lares destruídos costumam produzir probabilidades maiores de desvios nos mais jovens, e apesar de todo o discurso moderno contrário, ainda não se inventou uma instituição tão sólida como a família para mitigar tais riscos. Diz o jornalista:
Para a jurista Leah W. Sears, ex-presidente da Suprema Corte do estado da Geórgia, “um direito de família que não incentiva o casamento ignora o fato de que ele é associado a um amplo leque de resultados positivos — tanto para crianças como para adultos”. A seu ver, “os índices elevados de fragmentação da família estão prejudicando as crianças”. E conclui a juíza: “Claro, muitos pais solteiros fazem um excelente trabalho e precisam do nosso apoio. Mas acredito que construir uma cultura do casamento saudável é uma preocupação legítima para o direito da família.”
Concordo com a opinião de Leah W. Sears. A balança do bom senso pende para o lado da família. E a experiência confirma a percepção. Estudos mostram que crianças criadas fora do casamento estão mais propensas a abandonar a escola, usar drogas e envolver-se em violência. O Child Trends, um instituto de pesquisa americano, resumiu: “Filhos em famílias com um só dos pais, filhos nascidos de mães solteiras e filhos criados na nova família de um dos pais ou em relações de coabitação enfrentam riscos maiores de ficarem pobres.” Contra fatos não há argumentos.
Os estragos dessa ausência do núcleo familiar tendem a ser maiores entre os mais pobres. Mas atinge a todos: “Falta de limites e tolerância mal-entendida produziram muitos estragos”, escreve Di Franco. E isso tem tudo a ver com a postura mimada dos narcisistas modernos. Os adolescentes não podem se sentir envergonhados ou culpados de nada, precisam estar “bem” sempre.
O resultado é uma geração “desorientada e vazia”. Outro efeito é o relativismo ético, já que a culpa deve ser combatida, despersonalizada. Somado à impunidade, temos a receita certa para o caos da coisa pública, submetida a infindáveis escândalos de corrupção. A virada ética começaria, portanto, na família, segundo Di Franco.
Juntando os dois textos, chego agora à reportagem da Folha para fechar a linha de raciocínio. Falo do que os movimentos raciais têm chamado de “genocídio dos negros”, pois as estatísticas mostram que as chances de um negro morrer vítima de homicídio são bem maiores do que as de um branco, até cinco vezes maiores no nordeste. Diz o jornal:
Dos quase 30 mil jovens assassinados em 2012, 76,5% eram negros ou pardos. Ou seja: morreram 225% mais jovens negros do que brancos.
De 2007 a 2012, enquanto o total de homicídios de jovens brancos caiu 5,5%, o de jovens negros subiu 21,3%.
O estudo deve orientar políticas públicas para a juventude e responde a campanhas e protestos dos movimentos negro e de direitos humanos que apontam para o fenômeno como um genocídio da juventude negra brasileira.
Entre suas recomendações, o IVJ 2014 indica que políticas públicas para a juventude negra podem acelerar não só a redução da desigualdade racial mas também a da violência no Brasil.
Mas é preciso levar em conta que a deterioração das estatísticas para os negros ocorreu concomitantemente às políticas raciais mais favoráveis das últimas décadas, e também em um período em que a economia foi bem, especialmente no nordeste. Será que a solução é mesmo intensificar ainda mais a política de cotas raciais? Será que a saída é só financeira? Será que tem a ver com racismo?
Na mesma página, o jornal mostra como os motoristas estão sendo assaltados na volta do litoral no feriado, e a foto estampa um dos bandidos: negro.
Se esse bandido for morto pela polícia em tentativa de fuga, será que faz sentido falar em “genocídio dos negros”? O bandido é, então, a vítima? Não há volição em seu ato criminoso? A causa é mesmo falta de dinheiro ou oportunidade? Mas não estamos em pleno emprego, como garante o governo? Não temos o maior programa de benefícios aos mais pobres da história? O que se passa, então?
O jornal entrevista ainda uma ex-traficante que diz ter perdido a conta de quantos jovens enterrou, e que hoje tenta tirar seu filho de 16 anos do crime. O rapaz quase entrou para as estatísticas recentemente, ao ser baleado numa tentativa de fuga da polícia. Ela atribui a alta mortalidade de jovens negros ao racismo e à situação socioeconômica desse grupo. “A gente vive nessa vida porque tem que manter a família, e o desemprego é grande. Quando a pessoa vai presa ou já teve envolvimento, não arruma emprego de jeito nenhum”, diz.
Não pretendo negar a influência da situação econômica, o que já derrubaria, porém, o discurso oficial do governo e suas estatísticas. Mas será que não há mesmo algo mais por trás? Mesmo com taxas de desemprego em patamares mínimos históricos, Bolsa Família e cotas raciais, temos visto um aumento da criminalidade e, como mostra a Folha, em termos desproporcionais entre os negros. Mas seria a cor da pele o motivo?
Chego, então, ao término do longo texto oferendo uma alternativa diferente para nossa reflexão. Será que o esgarçamento ético não teria mais ligação com a escalada da criminalidade, tanto das periferias como dos grandes escândalos de corrupção em Brasília, do que a pobreza? E será que essa perda de valores éticos não teria algum elo com a dissolução familiar? E esta, por sua vez, não estaria conectada ao crescente hedonismo moderno, a busca desenfreada por prazeres “sem culpa”, pela fuga de laços mais duradouros e profundos? E isso, não seria o resultado do narcisismo dos que não aceitam o risco do sofrimento inerente à vida humana?
Rodrigo Constantino