Há fôlego para um último texto sério no ano, leitor? Sei e entendo perfeitamente que, nesse último dia do ano, queremos paz, otimismo, e descanso. Não é um dia como outro qualquer, mas um dia carregado de esperança, de um clima de empolgação, em que sonhamos com os dias melhores que virão. Mas espero que o leitor ainda tenha paciência para um texto final, e prometo que não será uma mensagem negativa.
E para não ser uma mensagem pessimista, mas também não cair no lugar comum da autoajuda, é preciso começar chafurdando na lama, para somente depois poder respirar um ar mais puro. Um amigo enviou essa reportagem sobre a autobiografia de Bruce Dickinson, cantor do Iron Maiden, banda de heavy metal que já usou até o inesquecível discurso de Churchill em abertura da música. Nela, Dickinson conta sobre sua experiência ao visitar Auschwitz:
Nós pensamos que somos todos seres humanos modernos do século XXI, mas estamos a poucos passos de Auschwitz, e não apenas com judeus. Existe um equivalente em algum lugar do mundo, todos os dias. Você pensa, Em que ponto nós começamos a evoluir? E então algo louco acontece, como [o massacre do concerto em] Las Vegas, e faz você se perguntar: o que há com seres humanos? Somos capazes de fazer isso?
Nenhum pássaro voa sobre Auschwitz. É como se o próprio solo contaminasse o ar com o cheiro da morte e o mal daqueles que caminharam e planejassem o horror. É a banalidade do planejamento da execução industrial em contraste com os gritos das câmaras de gás que são a verdadeira medida do terror. Esse terror, eu acredito, é o medo secreto de que todos nós possamos ser monstros lá no fundo. Isso me faz estremecer só de pensar… chorei muito depois da visita. Fiquei com raiva e silencioso. Até eu ir a Sarajevo dez anos depois, durante o cerco, eu não sentiria a mesma intensidade.
Bruce Dickinson faz a pergunta que todo conservador se faz, e que dá título ao relato comovente de Primo Levi sobre sua experiência em Auschwitz: é isto um homem? E a resposta que os conservadores encontram, normalmente, é na afirmativa, ou seja, tais atos monstruosos não foram cometidos por alienígenas, mas por seres humanos.
Quem é realista tende a adotar uma premissa bem conservadora, ao contrário dos “progressistas”. Participo de uma rede liberal de debates que tem de tudo, desde libertários revolucionários até conservadores. Um dos participantes, que se considera liberal clássico, mas que claramente se inclina à esquerda “progressista”, chegou a dizer em outro tópico:
Liberais são utópicos (no bom sentido do termo), o que vale dizer que, ao contrário dos conservadores, não acreditamos que o Homem seja malévolo por natureza, e que está fadado à autodestruição. Somos otimistas. Acreditamos no progresso. Acreditamos em uma vida melhor nesse mundo. E, é claro, acreditamos no Brasil.
Não há utopia no bom sentido. Ser utópico é ser revolucionário, acreditar em ilusões, e abandonar a razão (mais uma contradição dos “liberais” que se julgam tão racionais). Os conservadores, ao contrário do que ele diz (e parece nunca ter lido um conservador decente), não acham que o Homem seja “malévolo” por natureza, e sim que a maldade está nele também, que o “pecado original” não é palhaçada cristã. Freud, em Mal-estar na cultura, explica bem isso, e Freud era, nesse e em vários sentidos, um conservador, que foi deturpado por “progressistas”.
Joseph Conrad em Coração das Trevas e William Golding em Senhor das Moscas lidam com esse lado humano, demasiado humano que habita em nós, em todos nós. Partindo dessa premissa, os conservadores entendem que é preciso domesticar a besta humana, que civilizar é justamente colocar freios e grilhões, por meio da cultura (valores morais) e das instituições (mecanismo de incentivos) para que o melhor do ser humano possa florescer. Mas sempre lembrando que estamos a um passo da barbárie, pois a barbárie está em nós!
Essa postura, além de bem mais realista e racional, é também bem mais madura. Sartre dizia que “o inferno são os outros”, e o amadurecimento começa quando aceitamos que “o inferno está em nós”. Os “progressistas” preferem crer em utopias, num ser humano bonzinho que, se ao menos souber como se chega ao progresso material ou for deixado totalmente livre, será um anjinho que vai endossar o dogma da não-agressão e viver feliz para sempre, cantando “live and let live” ou “Imagine”. É a crença infantil dos “liberais”, que esquecem que Aushchwitz, como disse o cantor do Iron Maiden, está sempre ali na esquina…
O resumo disso que eu disse acima tem sido dito e repetido por filósofos mais conservadores como Pondé no Brasil e John Gray na Inglaterra: o progresso moral, se é que existe mesmo, não anda pari passu com o progresso material. Ter tanta riqueza não é garantia de que abandonamos a besta, o bárbaro, o homem da savana em nós, que permanece lá, latente, sempre à espreita, pronto para assumir o controle.
O filme “Deus da Carnificina” é ótimo para mostrar isso. A personagem de Jodie Foster era uma “progressista” iludida, e claro, hipócrita. O personagem de Christopher Waltz toca a real para ela, mostra que ela desconhecia totalmente a natureza humana, confundia o Central Park em Nova York com o mundo todo, e não entendia como os filhos deles tinham resolvido pendências por meio da agressão, e não do diálogo.
Todas essas bandeiras politicamente corretas da esquerda, essa marcha “progressista” das minorias oprimidas, esse papo de “tolerância e diversidade”, vêm mascarar o real, tampar a besta que vive nessa turma. Tanto é assim que esses “progressistas” são os mais odientos, raivosos, intolerantes. Enquanto os conservadores que conheço, em geral, são pessoas doces, educadas, elegantes, e realmente tolerantes. Pois conhecem a natureza humana, a condição humana, e não caem em ilusões do jardim da infância.
O pai intelectual dessa turma é Rousseau, claro, com seu mito do “bom selvagem”, premissa que o “liberal” adotou ao descartar o lado “malévolo” do Homem. Alguns forçam a barra para colocar Rousseau como liberal. Só se for no sentido que usam aqui nos Estados Unidos. Liberais de esquerda! Burke, liberal verdadeiro, um Whig que entendeu o risco jacobino, considerava Rousseau um “filósofo da vaidade”, ou seja, preocupado com a estética e sua própria imagem, não com o próximo, e muitos o consideram o pai dos totalitarismos modernos. Seu conceito de “vontade geral” é outro troço bizarro e coletivista, ao gosto da esquerda.
Admitir que o demônio nunca será totalmente derrotado é o primeiro passo para o progresso moral, de que tanto necessitamos. Os conservadores compreendem isso. Os liberais clássicos podem perfeitamente entender isso. São os “progressistas” que, normalmente, ignoram isso. E aqueles que ignoram o passado estão condenados a repeti-lo, como lembrou George Santayana.
Mais um ano termina, e um novo começa, com o que isso representa em termos de esperanças, de renovação, de avanços. A mensagem é de otimismo: dias melhores, de fato, poderão vir. Mas desde que sejamos realistas e racionais, ou seja, maduros, e evitemos as utopias românticas, as ilusões, uma visão do Homem incompatível com a sua essência, que não é sempre má, mas tampouco boa, que precisa, enfim, ser lapidada, civilizada, e que jamais derrotará 100% o lado ruim.
E os conservadores entendem outra coisa importante: tal civilização não se dá apenas com base na razão, mas sim naquilo para além da razão, nas tradições, na imaginação moral, nos tabus e valores que são transmitidos de geração em geração e servem como cola para o tecido social, nas instituições como a família e a religião. Esses são instrumentos indispensáveis para esses freios ao nosso lado mais bestial, que libertários “progressistas” querem fomentar com sua mensagem de hedonismo irresponsável e “vale tudo”.
Alguns excessos na passagem de ano são permitidos e talvez até desejáveis, justamente porque não são a regra, mas sim a exceção. Quebrar a rotina tem seu valor, mas tornar rotina um estilo de vida inconsequente e libertino é o caminho certo da desgraça. Infelizmente, muitos “progressistas” ignoram esse alerta, e por isso precisamos dos conservadores. Eles podem ser “chatos”, mas, como disse Roger Scruton, também estão certos. Um feliz 2018!
Rodrigo Constantino