O patrimonialismo é a antítese do republicanismo. Um significa tratar a “coisa pública” como “cosa nostra”, encarar o estado como um puxadinho da família, adotar postura personalista em tudo que decide; o outro é justamente o contrário, valorizar o conceito da impessoalidade, da meritocracia, da eficiência, mirando no interesse geral, não nos seus próprios.
O patrimonialismo, em resumo, é a esfera de atuação dos populistas e demagogos, enquanto o republicanismo é a seara dos estadistas. E sabemos quão raros são os estadistas! Ainda mais abaixo da linha do Equador. O patrimonialismo é o câncer da política latino-americana.
E não é nada fácil romper com esse ciclo! Até mesmo Bolsonaro, que vem com uma agenda reformista e modernizante em várias áreas, em especial na economia, que decidiu desafiar o toma-lá-dá-cá na formação dos ministérios, que adotou discurso ético quase purista de tão intransigente, até mesmo esse Bolsonaro parece ter sucumbido às tentações patrimonialistas. O clã familiar está acima de tudo, o que dá outro sentido, menos nobre, ao seu slogan que valoriza a família.
Com ingerências indevidas em importantes órgãos de estado, sob suspeita de motivação indecorosa – blindar seu filho do escrutínio da lei – o presidente vai se desgastando, e jogando fora a imagem de “incorruptível” que foi montando ao longo da vida. Incentivar o puritanismo ético tem dessas coisas: os jacobinos degolaram Robespierre, pois passou a ser visto como “traidor”.
Criaturas fanáticas invariavelmente se voltam contra criadores imperfeitos – e somos todos imperfeitos. É o grande risco de Bolsonaro ao flertar com esse patrimonialismo que jurou combater. Caio Coppolla, que é sempre muito elogiado por bolsonaristas, foi duro nas críticas a esse lado do governo.
Só de indicar um editorial do Estadão, tratado como “extrema-imprensa” pela ala radical do bolsonarismo, já deve fazer de Caio um novo “traidor”. Mas a lista de “traidores” tende só a aumentar, pois qualquer pessoa inteligente, honesta intelectualmente e com independência vai intensificar o tom das críticas à medida que Bolsonaro se afasta de certas promessas de campanha.
Fernando Schüler fez uma boa análise sobre esse lado arcaico de um governo reformista. Ele reconhece a agenda positiva, não só na economia, e destaca também o novo relacionamento com o Congresso, o que forçou maior autonomia dos parlamentares, assim como a necessidade de persuasão. Também admitiu que o problema não está nos arroubos pró-regime militar ou coisa do tipo, o que já era conhecido. O calcanhar de Aquiles estaria nesse patrimonialismo mesmo:
O elemento arcaico, que vai ganhando corpo no governo, reside na atitude do presidente diante das agências e instituições de Estado. Os casos são conhecidos. A evidente ingerência nos comandos da Policia Federal, no Rio de Janeiro, e na cúpula da Receita Federal; a ideia sem cabimento de nomear o filho para a embaixada em Washington, o veto à lista tríplice para a direção das agências reguladoras, na nova legislação aprovada pelo Congresso, e a reiterada crítica à política de financiamento a filmes, que segundo o presidente não deveriam atentar contra a moralidade dominante no país.
Bolsonaro diz que intervém nos órgãos de Estado porque pode. Porque tem poder, em última instância. É verdade. Ele pode, nos limites da lei, mas não deve. É verdade que o presidente é superior hierárquico ao ministro da Justiça, a quem se subordina o superintendente da Polícia Federal, que por sua vez está acima dos superintendentes regionais. Em última instância ele pode cortar todo este caminho. Mas não deve.
A República é feita disso. De contenção e respeito a esferas de poder. Bolsonaro diz que não quer ser um presidente banana. A expressão é boa. Diria que, em uma república, o presidente precisa se comportar, liturgicamente, como um banana, se isso significar respeitar a autonomia de agências reguladoras e conter seus próprios ímpetos voluntaristas. Tudo que o poder permite, mas a prudência não recomenda.
Bolsonaro vai se revelando, gradativamente, como um político tradicional. Um político do varejo, preocupado com pequenas coisas que podiam fazer sentido a um deputado de nicho, não a um presidente. Nem o homem de ruptura, na visão de seus entusiastas, nem o fascista, nas alegorias da oposição de sempre.
É por aí mesmo. Só que se Bolsonaro é apenas “mais do mesmo”, ainda que melhorado em vários aspectos, ele perde aquela aura de quem pairava acima do bem e do mal, o “mito” que vinha consertar a podridão política, o “messias” enviado para resgatar a decência em Brasília. E sem essa armadura fictícia, ele será julgado por erros e acertos, como todos os demais, sem a blindagem de sua militância fanática, que ficará cada vez mais restrita ao gueto extremista de uma seita minoritária, falando sozinha entre si. O patrimonialismo, enfim, poderá ser fatal para o bolsonarismo.
Rodrigo Constantino
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