Bolsonaro teria atacado “inimigos imaginários” em seu discurso na ONU, ao falar de socialistas. Assim reagiu a imprensa em peso. O editorial do Estadão, por exemplo, partiu para cima do presidente:
O que se ouviu, no entanto, foi um ataque feroz contra um inimigo imaginário e a favor da intolerância – que desde sempre alimenta os discursos de Bolsonaro, agora amplificados pela sua condição de presidente da República.
Logo no início do pronunciamento, Bolsonaro tratou de nomear seu grande desafeto, dizendo que o Brasil “ressurge depois de estar à beira do socialismo”. E continuou, para perplexidade geral: “Meu país esteve muito próximo do socialismo, o que nos colocou numa situação de corrupção generalizada, grave recessão econômica, altas taxas de criminalidade e de ataques ininterruptos aos valores familiares e religiosos que formam nossas tradições”.
O comentarista Guga Chacra, no GLOBO, foi na mesma linha:
Seus reais adversários não estão em Havana, Teerã e Caracas. São, na realidade, os liberais democratas ocidentais como Macron, Trudeau e Obama. Basicamente, o movimento se posiciona contra o novo Ocidente e celebra um imaginário ou ultrapassado.
Os soberanistas repudiam a agenda multilateralista destes líderes europeus e dos democratas americanos. Buscam associar este liberalismo político ao comunismo cubano e ao regime cleptocrático da Venezuela quando não há nada em comum entre o presidente francês e o ditador venezuelano. Também afirmam que a mídia e mesmo alguns empresários e banqueiros integram esta “conspiração esquerdistas”.
Mas será que o socialismo é mesmo uma “ameaça fantasma”, um “inimigo imaginário”? E será que Obama, Trudeau e Macron são mesmo liberais democratas?
O socialismo acabou mesmo, é algo do passado, enterrado na Guerra Fria? Nem vou falar de Cuba e Venezuela, como pede Guga, ou do preposto de Lula com 37 milhões de votos ainda “ontem”. Bernie Sanders é socialista assumido, não critica a Venezuela, passou a lua de mel na União Soviética, quer taxar os mais “ricos” e oferecer tudo “grátis”. Sanders quase foi o candidato democrata em 2016, e tem chances ano que vem ainda.
Alexandria Ocasio-Cortez, a “nova face” democrata, é uma ambientalista radical e também socialista. Seu Green New Deal, endossado por vários democratas, é um projeto stalinista. A base democrata, “liberal”, é cada vez mais radical em seu esquerdismo. Diz que defende o modelo escandinavo, mas é mentira: quer o velho socialismo mesmo, o dirigismo estatal, o centralismo decisório. Trump sabe que a ameaça socialista é real e que, se a mídia ignora isso, o povo não ignora. Por isso ele também fala tanto que a América nunca será socialista. Não é um “inimigo imaginário” para o presidente republicano.
Derrubada a falácia de que o socialismo é um “inimigo imaginário”, resta refutar o rótulo de liberal que Guga e boa parte da mídia usam para se referir a esquerdistas “progressistas” e muitas vezes radicais, como no caso de Obama. Dediquei um capítulo inteiro de Esquerda Caviar para defender a importância dos conceitos e das palavras, e definir bem os rótulos. Escrevi:
Antes de mergulhar nas bandeiras politicamente corretas da esquerda caviar e em seus ícones, faz-se necessário explicar um pouco melhor a estratégia de obliteração da linguagem de que se vale. Não há socialismo moderno sem uma “novilíngua” orwelliana.
Confúcio teria feito um alerta importante: “Quando as palavras perdem seu significado, as pessoas perdem sua liberdade”. O uso adequado das palavras é essencial para a compreensão da realidade. Sem isso, entramos em um pântano perigoso. Se o que é dito não tem sentido claro, então o cinismo acaba corroendo tudo.
A linguagem “serve para que os homens se entendam e se aproximem”, escreveu Mário Vargas Llosa. Por isso mesmo, aqueles que desejam inviabilizar o pensamento límpido costumam escolher como principal alvo os conceitos das palavras. Os manipuladores deturpam a linguagem para lançar uma nuvem de poeira no raciocínio de suas vítimas.
Em sua clássica distopia 1984, George Orwell chamou de duplipensar a “capacidade de guardar simultaneamente na cabeça duas crenças contraditórias e aceitá-las ambas”. O objetivo das autoridades seria a destruição do pensamento independente: “O poder está em se despedaçar os cérebros humanos e tornar a juntá-los da forma que se entender”. Guerra é paz, liberdade é escravidão, ignorância é força.
Para Orwell, uma linguagem com regras aceitas e mutuamente compreendidas era condição indispensável a uma democracia aberta. Karl Popper era outro que defendia como um dever de todo intelectual “o cultivo de uma linguagem simples e despretensiosa”. E foi além: “Quem não pode falar de modo simples e claro deve calar-se e continuar trabalhando até que possa fazê-lo”.
Após essa introdução e vários exemplos de palavras deturpadas pela esquerda, cheguei justamente ao caso do conceito de liberal:
Palavras e expressões fazem diferença na cultura de um povo. Mas mesmo os americanos não ficaram livres das manipulações de conceitos. A esquerda lá foi tão eficiente que usurpou até mesmo o termo “liberal”, que passou a ser associado a políticas claramente antiliberais, que pregam sempre maior intervenção estatal na vida dos indivíduos.
O líder do Partido Socialista americano, Norman M. Thomas, em um discurso de campanha em 1948, declarou que o povo americano jamais adotaria o sistema socialista de forma consciente. Mas, sob o nome “liberalismo”, encamparia cada fragmento do programa socialista até que um dia a nação seria socialista sem saber como aconteceu. Quando vemos que Obama se diz um “liberal”, temos de reconhecer a capacidade profética do líder socialista.
No Brasil, o termo perdeu totalmente seu sentido, e nossos males sempre foram jogados na conta do tal “neoliberalismo”. Porém, como disse Roberto Campos, o “Brasil está tão distante do liberalismo – novo ou velho – como o planeta Terra da constelação da Ursa Maior!” Só mesmo no Brasil que um partido de esquerda como o PSDB pode ser rotulado de neoliberal.
Recentemente, talvez por perceber os ventos de mudança e o declínio da esquerda, chamuscada pelo desgaste no poder, parte da imprensa começou a tentar criar no país a mesma dicotomia entre liberal e conservador existente nos Estados Unidos. A Folha, quando fez uma reportagem sobre uma pesquisa que mostrava que o brasileiro é conservador, colocou a bandeira do desarmamento como coisa de liberal. Não! Desarmar inocentes não é uma bandeira liberal, até porque os liberais respeitam o direito individual de legítima defesa.
Ou seja, no meu bestseller eu já tinha rebatido essa tática esquerdista de tentar se apropriar cada vez mais do termo liberal no Brasil, como fizeram aqui nos Estados Unidos. Meu último livro, Confissões de um ex-libertário, foi um passo adiante, e o subtítulo já diz muito: “Salvando o liberalismo dos liberais modernos”. É uma defesa do liberalismo clássico, contra os “liberais progressistas” de esquerda, os libertários utópicos e também os reacionários nacionalistas.
Bolsonaro não é um liberal, apesar de ter um ministro da Economia e uma agenda reformista bastante liberais. Está mais para um nacional-populista, e mira num centro mais moderado como inimigo mesmo. Mas isso não quer dizer que o socialismo desapareceu como ameaça, ou que socialistas mais moderados na forma sejam liberais.
É preciso colocar os pingos nos is, pois há método nessa confusão deliberada de conceitos por parte de esquerdistas como Guga Chacra. Se até um socialista “light” como Obama for chamado de liberal, então é porque o radicalismo de esquerda já foi incorporado numa visão suave e mainstream, o que é inaceitável. E conhecemos a tática dessa revolução silenciosa: em breve até Bernie Sanders será apenas um liberal. Nem aqui, nem em Cuba!
Rodrigo Constantino
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