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A “Política” de Aristóteles e a liberdade dos antigos
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Por Lucas Berlanza, publicado pelo Instituto Liberal

São muitos os que alegam, com boa razão, que toda a tradição ocidental da Filosofia é um acréscimo de notas de rodapé à obra do grande grego Platão (428/427 a.C. a 348/347 a.C.). Com a mesma certeza, porém, asseveramos: toda a boa tradição do conservadorismo político moderno de feições liberais, englobando o irlandês Edmund Burke (1729-1797), é, na verdade, sem exagero algum – e sem qualquer demérito por isso -, uma releitura atualizada da notável Política de Aristóteles (384 a.C. a 322 a.C.).

Alguns poderão questionar o que um filósofo de quase quatro séculos antes da era cristã poderia ter a ver com as atuais correntes do conservadorismo e do liberalismo. Em primeiro lugar, Sócrates, Platão e Aristóteles têm a ver com praticamente tudo. Não há quase nenhuma grande área do saber e da especulação filosófica que os especialistas não reconheçam como tendo tido algum princípio no que esses homens gigantes fizeram na Grécia Antiga. Especificamente no campo político, a Política é um tratado imortal que, postas de lado as suas inevitáveis especificidades temporais, oferece referências capazes de servir muito bem para reflexões atuais.

Naturalmente, e seria anacrônico dizê-lo, Aristóteles não conheceu o liberalismo, sob a forma das instituições constitucionais e representativas modernas. Em seu ensaio A liberdade dos antigos comparada à dos modernos, Benjamin Constant (1767-1830), influência para a concepção do Poder Moderador na monarquia brasileira oitocentista, pontuou que a ideia de liberdade predominante na Antiguidade enfatizava, muito mais do que o estabelecimento de regras que protegessem prerrogativas individuais da ação do Estado, a participação direta nos processos decisórios, sem o figurino ora vigente da escolha de representantes.

É o que encontraremos na Política, como não poderia deixar de ser. Deixando de lado outros conceitos aprovados na obra que hoje podem transparecer aberrantes ou esdrúxulos, mas eram corriqueiros à época – como a escravidão, as considerações no mínimo algo subestimadas acerca das mulheres, as recomendações de idades certas para casamentos e abortos -, concentramo-nos aqui na sua concepção geral de sociedade e política.

Sua percepção da “pólis”, a cidade-Estado, isto é, do Estado propriamente dito, como um produto natural do fato de o ser humano ser um “animal político”, gregário, estruturando-se esse Estado a partir da família como unidade fundamental, é referência para o conceito de “direito natural clássico” que inspiraria Burke em sua crítica aos “direitos naturais” abstratos dos filósofos franceses que inspiraram a Revolução, com o recurso etéreo ao “contrato social” à maneira de Rousseau (1712-1778). Não seria essa condição da vida sob instituições dentro de uma sociedade um acordo mítico para retirar-se do estado de completa natureza, mas parte mesma do que efetivamente nós somos.

É uma concepção que, em um mundo com populações muito menores e muito menos capacidade de triunfo sobre adversidades materiais e geográficas, valorizava realmente, tal como diz Constant, antes a atuação direta no corpo do Estado e nas decisões que o direito à autonomia individual por fora dele.

Essa participação e as prerrogativas de cada homem dentro das diversas sociedades políticas variavam, sobretudo em função de ricos e pobres. Isso porque Aristóteles expõe um entendimento, muito presente na sustentação do voto censitário, de que os mais abastados, distantes do trabalho braçal, tenderiam a ser mais próprios a se ocuparem das questões públicas – a ser, portanto, “cidadãos”, por oposição ao contingente populacional que ele considerava apenas “habitante” do território. Ele também colocava a educação como um dever do Estado, submetendo-se as crianças à sua ampla tutela para que fossem educadas ao “bem comum”, finalidade principal da ordem política, para a qual “o homem é naturalmente feito”.

Apesar disso tudo, Aristóteles já consagrava o direito de propriedade e defendia o compromisso das lideranças com o combate à miséria e a procura do bem geral. “(…) não é apenas para viver juntos, mas sim para bem viver juntos, que se fez o Estado”, visando a virtude e a felicidade em vez da belicosidade e da violência. Antecipava que as conformações das instituições e Estados guardavam alguma proporção com as condições naturais e culturais das diferentes populações e que, portanto, seria antinatural “forçar” figurinos institucionais inteiramente idênticos para os quatro cantos do globo. “Não é suficiente conhecer a melhor forma (de governo)” ele disse, “é preciso ver, em cada caso particular, qual é aquela que é possível estabelecer”, hesitando diante da sugestão de mudanças bruscas, receitas artificiais ou revoluções. Essas ideias não inspiraram, quase intocadas, autores como Burke muitos e muitos séculos depois?

Nada, porém, é mais atual nesse tratado de Aristóteles para a apreciação da política, não apenas atualmente como ao longo de todos os séculos desde então decorridos, que os modelos de formas de governo existentes que o filósofo categorizou. Esse modelo é um arquétipo eficaz para, adaptado às circunstâncias, entender uma série inumerável de regimes que, com essas ou aquelas inovações próprias aos tempos, ainda bebem muito das mesmas fontes, ainda são ali reconhecíveis em vários aspectos primaciais.

As grandes categorias gerais em que ele divide os governos têm várias subdivisões, ricamente ilustradas com exemplos da época. A cada uma delas corresponde um regime degenerado, que seria sua pior variante. Limitamo-nos a um resumo de suas características gerais e das formas pervertidas. Uma das grandes categorias de governo é a Monarquia, isto é, o poder nas mãos de um só, que podia variar bastante em tipos temporários, eletivos, hereditários, militaristas e até absolutos. A degeneração da monarquia é chamada Tirania, um regime despótico em que o indivíduo que concentra o poder despreza a sociedade política e se ocupa apenas de seus interesses.

A outra categoria é a Aristocracia, o “governo dos melhores”, onde apenas alguns indivíduos, distinguidos por sua superioridade de méritos, governam a cidade. Sua degeneração é a Oligarquia, quando esses governantes exclusivos não apresentam efetivamente o mérito desejado. Em alguns casos, as oligarquias atrairiam a ira do povo pelo entesouramento que promoveriam às custas de todos à volta.

Soma-se a elas a famigerada Democracia – evidentemente, não pode ser confundida com o conceito, típico da modernidade, da “democracia representativa” -, em que todos os homens livres votam, ou a maioria que dispusesse de alguma renda, mas com mais amplitude que nas oligarquias. O problema, num ponto extremo, é que a maioria mais pobre poderia degenerar a democracia em uma Demagogia, um governo em nome da indigência, que perverteria a propriedade e degeneraria o conjunto social.

Por fim, acrescenta-se a “República” propriamente dita, um regime equilibrado que mesclaria aspectos da democracia e da aristocracia. Aristóteles cita o exemplo da Lacedemônia, onde, se os mais ricos – teoricamente, lembre-se, com mais mérito e condições de governo – tinham prerrogativas especiais para várias decisões, como a aplicação de penas (modernamente, determinadas também por pessoas especiais, os juízes profissionais), por outro lado, “a comida é a mesma para os filhos dos ricos e para os dos pobres, a mesma instrução, a mesma severidade no trato; na idade seguinte, o mesmo gênero de vida quando se tornam homens. O rico não tem ali nenhum sinal exterior que o distinga do pobre; ambos comem da mesma carne nas refeições públicas, vestem-se com os mesmos tecidos que o pobre, qualquer que seja ele, pode com facilidade obter. Além disso, das duas maiores magistraturas, o povo designa uma e participa da outra”.

O que a maioria dos conservadores liberais modernos faz, conscientemente ou não, é acoplar a nata dessas teses ao quadro contemporâneo, efetivando sua associação a bandeiras liberais como a representação e a Constituição moderna, concebida com a intenção mais pronunciada (ainda que nem sempre bem realizada) de resguardar o indivíduo do arbítrio estatal sem regras claras e contenções.

Nesse sentido, a preocupação de Aristóteles pode bem ser entendida hoje como a pretensão, politicamente cética – ou, se quiserem, humilde -, de evitar que o caldo transborde, degenerando a democracia radical em um tipo singular de autoritarismo, ou encastelando em instituições muito fechadas em si mesmas a contenção total das liberdades e prerrogativas das pessoas em geral.

Tal equilíbrio, conseguido com instituições sólidas e império da lei, é, de maneira refinada, o que visam e visaram os defensores de uma ordem liberal, como Friedrich Hayek, Donald Stewart Jr. e tantos outros. É exata e tão-somente o que queremos. Que as melhores luzes da nossa civilização, de cuja gestação Aristóteles é comprovadamente parte essencial, nos inspirem sempre nessa luta pela sensatez e a dignidade.

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