Por Lucas Berlanza, publicado pelo Instituto Liberal
O cenário confuso e fragmentado que sucedeu a queda do lulopetismo fez com que, perante acertos e áreas cinzentas do governo de Michel Temer, grupos distintos do antipetismo ou do “antiesquerdismo” passassem a trocar farpas. Uma das discussões que se têm colocado é o debate entre a importância, no enfrentamento político, de uma posição pragmaticamente utilitária e uma posição mais fundamentada em princípios morais ou ideais – o que alguns dos que apoiam a primeira alternativa costumam taxar de “moralismo”.
O problema é filosoficamente desafiador. Confrontado por um amigo muito kantiano, certa feita, sustentei minha visão de que, embora a mentira seja algo genericamente imoral, o alemão que mentisse aos oficiais nazistas para esconder judeus perseguidos em sua casa não estaria procedendo mal. Há alguns condicionantes da realidade que efetivamente se impõem, e a decisão tomada nesse caso hipotético se teria dado para proteger a vida daquelas virtuais vítimas do nazismo – ou teríamos de supor que um Oskar Shindler, o famoso empresário que protegeu judeus em sua fábrica, por exemplo, seria algum tipo de criminoso. Pior: quase qualquer ato em uma guerra, mesmo para proteger a própria pátria ou as liberdades individuais, seria abominável.
No entanto, admitir essas concessões que alguns poderiam chamar de utilitárias não me permite abandonar a convicção muito mais profunda em princípios morais fundamentais. Não admito negociá-los – e a importância da verdade, da honestidade, de conceber que não se pode obter a vitória a qualquer preço, é um deles. Estou certo de que não há vitória desejável quando a alcançamos às custas da trapaça, de cerrar os olhos a todos os tipos de absurdos, das mentiras mais sórdidas, de dizermos que vemos azul onde há vermelho apenas para proteger aliados estratégicos. Este é o exemplo que acredito que liberais e conservadores, por mais que necessidades pragmáticas se mostrem imperativas na política real, não devem seguir.
É o mau exemplo do cientista político, formado em Filosofia na USP, Emir Sader. Serei o último a negar que um intelectual respeitável possa, à revelia da qualidade de suas obras, externar, em outras circunstâncias, estultices esquecíveis. No entanto, até para isso há um limite moral que não pode ser ultrapassado, sob pena de o intelectual subordinar todo o seu juízo de valor ao critério utilitário da pertença a uma “gangue”, um grupo sectário cujos interesses são absolutamente prioritários, em detrimento do mínimo senso de verdade, justiça e dignidade humana.
Em seu Twitter, esse representante da fina flor da nossa intelectualidade acadêmica esquerdopata tupiniquim escreveu no último dia 27: “Pode-se ter críticas ao governo de Maduro, mas ninguém de esquerda pode estar contra seu governo, porque a alternativa é a volta da direita”. Para Sader, podemos – quer dizer, os esquerdistas podem; por óbvio, não sou e jamais fui um – “criticar”, da mesma maneira com que você critica um filme ou alguma política pública equivocada, um regime político que censura a imprensa, persegue a oposição parlamentar, submerge sua população na mais desesperadora das carências e assassina, por meio de repressão armada, um número que já alcança ao menos nove dezenas de manifestantes. Afinal, aparentemente, não há qualquer critério moral, para Sader, que diferencie um tipo de crítica do outro.
Independentemente de tudo isso ser verdade, independentemente de censurar imprensa, reprimir e matar a própria população, Maduro deve ficar – porque ele é socialista. Porque ele é “de esquerda”. Porque ele é “bolivariano”. Em outras palavras, porque ele pertence, simbolicamente, retoricamente e mesmo em termos estratégicos, à mesma máfia do Foro de São Paulo com a qual Emir Sader está alinhado. A “minha turma” pode tudo, inclusive abrir mão de qualquer princípio – princípios, aliás, que eu mesmo defendia pouco tempo antes, mas dos quais posso abdicar caso seja útil aos interesses de “vitória” do “meu lado”.
Curiosamente, é um absurdo que legitimaria qualquer ditadura retoricamente “de direita”, caso ela se estabelecesse. Se Sader considera que, para evitar a “direita no poder”, vale tudo, que autoridade moral ele terá para nos questionar se, amanhã ou depois, reivindicarmos que uma ditadura tome o poder para perseguir pessoas como ele? Se vale tudo, estaremos “certos”, posto que o “certo” é tão-somente aquilo que auxilia na satisfação dos interesses temporais. Alguém inteligente não pode deixar de perceber a contradição em satanizar o “terrível regime dos militares de 64” e falar que se pode “criticar” Maduro, mas não desejá-lo deposto. E de fato não deixa; Sader percebe essa contradição. O problema é que é um canalha.
Eis o que Emir Sader faz e nós não podemos e não devemos fazer; que vitória será essa se abdicarmos do que nós somos? A mensagem que fica é: não apenas não devemos agir da mesma forma, cerrando os olhos a um absurdo quando o virmos, como devemos repudiar amplamente esses gestos desumanos e insensíveis, mesmo que quem os cometa seja alguém que, aos olhos dos padrões distorcidos e empobrecidos de nossa sociedade, seja julgado respeitável.
Emir Sader pode ser um professor, escritor, cientista político, formado em Filosofia, intelectual, articulista de jornal, guru, o que for: acima de tudo isso, ao defender a ditadura chavista, torna-se um escroque desprovido de senso moral. Nenhum título o isenta disso.