Por Sergio Renato de Mello, publicado pelo Instituto Liberal
A Constituição Federal traz a previsão de um processo legislativo de elaboração de leis mais acelerado em razão de certas necessidades mais urgentes para a população, quando o tempo necessário entre o seu início e fim são bastante abreviados.
Imagine-se que o indivíduo esteja dentro de um regime de urgência por estar vivendo numa sociedade globalizada, cheia de mimos de todos os tipos e direitos para todos os tipos de gostos, e ele se vê na necessidade mais do que urgente de ser considerado em sua unicidade e individualidade. Imagino que o indivíduo esteja em regime de urgência por estar afetado a aceitar, consciente ou não, imposições ou sugestões de toda ordem, vindas, principalmente, de cima para baixo. Analisando o indivíduo e pensando na sua possível extinção, vai-se perdendo o caráter individualista de ser, a personalidade marcante, entrando num mundo da coletividade que é, hoje, a pauta considerada mais urgente entre tantos desejos e insatisfações humanas ainda não realizadas. O grau de elevação desses desejos em nível de exigibilidade, quem os eleva ou os faz parecer dignos e o seu nível de aceitação social, ao menos nesse texto, não está em análise.
Então, que tal deixarmos um pouco de lado a pauta coletiva e falarmos do indivíduo? É que o indivíduo precisa de reforma, urgente.
Os marcos da história demarcam a tentativa do homem de desmascarar Deus ou a sua existência como um ser supremo para além de todo significado racional e humanitário. O homem tinha adquirido a liberdade suprema e a deixou escoar por entre seus dedos quando abriu a mão para o mistério e desconhecimento, antes revelado também, como fonte original disso, o seu interesse pelo fruto proibido, apesar de advertido das suas consequências. O homem (ainda não estamos falando de indivíduo) tinha tudo para ser a mais perfeita criatura de Deus, um ser quase livre em extremo e absoluto campo de liberdade possível até ter surgido o momento de cair em queda.
Hoje, já considerado o homem como indivíduo, vivendo em sociedade e tendo direitos e deveres a cumprir, ainda continua livre de acordo com o que diz a lei, mas agora com consequências imediatas de seus atos. O império da lei é que determina o seu agir. Mas os legisladores são bem outros, ainda não muito bem identificados pelos sistemas democráticos de cada país.
As liberdades irrestritas dos dias de hoje, o globalismo como ordem reinante acima das soberanias e uma das suas vertentes mais nefastas, a relatividade moral, com o consequente esfriamento do sistema legal de fazer cumprir regras, ditadores e legisladores não democráticos, porque ao mesmo tempo não eleitos e nem um pouco suspeitos de seu agir, enfim, tudo isso e muito mais representa um modo de ser e de agir antidemocrático e anti-individualista que coloca o indivíduo em pé de desigualdade com os novos direitos e interesses. Ao menos no modo de exercício de certos direitos, há indicativos de que o indivíduo vai perdendo essa luta, não só pelos meios desonestos, manipuladores e sutis em que ela é propagada, como também pela quantidade de lutadores em pressão do outro lado do grupo coletivo.
Quanto aos legisladores desse atual estado de coisas por assim dizer aceitas, eles não foram eleitos para estarem ali ditando as regras como se fossem representantes. É a intelligentsia, provedora das necessidades mais básicas das camadas sociais mais necessitadas (no seu entender). Ou seja, são os longa manus de um poder de império maior do que a nossa própria vontade manifestada no voto popular ou na democracia representativa.
O que deu errado?
Ciente ou não desse atual estado de coisas, dessas mazelas, o homem é produto não pensante como uma máquina de reproduzir nos domínios do senso comum. Algo que é inerente a um estado de ser irracional repetitivo que é retroalimentado por doações que faz de si próprio.
O homem prefere não emitir juízo algum acerca de qualquer coisa, lamentando e justificando sua conduta omissiva numa certa e suposta compaixão. Ele não quer condenar para não se ver desprezado pelos demais. Ora, essa apologia da compaixão politicamente correta deixa de ser certa quando se sabe que juízos de valor são necessários para se evitar indiferença e, na palavras de Dalrymple, um certo sadismo. Por outro lado, acredito que só num certo viés o juízo de valor parece ser justo, exatamente quando do zelo pela dignidade da pessoa humana. Mesmo o mais bravio dos doentios seres humanos merece ser tratado como tal e não como lixo.
Ainda no politicamente correto, palavras como egoísmo e preconceito perderam o seu caráter léxico por agregar valores morais indevidos. Ayn Rand, em seu ensaio sobre a virtude do egoísmo, o objetizou e deixou isso bem claro ao informar que seu significado é meramente preocupação com nossos próprios interesses. Portanto, deve ficar de fora qualquer dado maldoso nessa palavra. No entanto, a mera pronúncia dela na presença de alguém já induz um certo sentido valorado negativamente.
O homem degradou seu modo de viver e sua cultura. Vivendo a lá John Stuart Mill, conseguiu fazer renascer das cinzas o robótico, seco e sem amor utilitarismo de Bentham para viver de uma fácil equação matemática: PRAZER X DOR. O grande problema é que o estuprador sente prazer mas a criança vítima vai carregar marcas corporais e mentais, e porque não dizer almáticas, indeléveis para o resto de sua vida.
O homem é mimado e ressentido. Mimado porque, em vez de procurar a sua caça, prefere quero, logo tenho direito, que significa o mesmo que quero, logo existo, para exemplificar a era dos direitos de hoje em dia. Por outro lado, o homem ainda ressente-se de que pode algum dia chover ou dar sol quando quer que dê sol ou chova.
O homem ainda vive oprimido, muito embora viva num estado democrático de direito. A difícil solução para a modernidade ou pós modernidade será conciliar dos interesses que parecem antagônicos entre si: a concessão de supostos direitos ou exercício deles com o exercício de outros direitos também louváveis e achados na legislação. Por ser taxado de preconceituoso, homofóbico, machista, sexista, racista, capitalista, quando, na verdade, uma certa idéia preconcebida de coisas (Dalrymple) é um achado valiosíssimo de liberdade de expressão e manifestação de pensamento e de crença com previsão constitucional, alimenta essa expectativa opressora do outro que se diz vitimado.
Certo ceticismo faz parte de cultura desse homem moderno, se comportando com um verdadeiro cego num tiroteio. São tantas as versões de fatos e de ideias que lhe são apresentadas que chega ao colapso mental ao tentar discernir entre o bem e o mal. Estratégia de grupos autoritários e pertencentes a uma classe de ver coisas utópicas, óbvio, com intenção de afrouxar a percepção e, consequentemente, o senso moral.
Esse home era prudente, mas agora resolveu ser progressista, achando que evoluir de qualquer forma é estar alinhado com o presente e com o futuro da humanidade. Afinal de contas, segundo Chesterton, A sua mente tem as mesmas liberdades duvidosas e as mesmas limitações selvagens.1
Hoje, ainda com medo das armas, muito embora já alforriado há tempos, o indivíduo continua sendo escravo de uma entidade difusa (ele não sabe exatamente de quem). Vive e prefere viver no campo, perdeu o caminho de volta para a senzala e não sabe onde fica a casa grande. Como se disse, prefere viver a lá Stuart Mill, desconhecendo a verdadeira face oculta ou ocultada de Karl Marx, porque a escola só ensina o seu lado bonzinho, e o não mais saudoso Antonio Gramsci. Este é quase um desconhecido, porque o pessoal que estuda prefere olhar figuras de armas e cadáveres. São mais interessantes. Por outro lado, se soubesse onde fica a casa grande, ainda assim estaria preferindo ficar na senzala ou no campo, pois a sua miséria íntima já faz parte de seu círculo vicioso de vida.
Essas são as características do indivíduo enquanto ser preso a um estado de coisas miseráveis em “avanço” ao homem em seu estado natural, próprias da modernidade.
Agora, quanto ao homem original, qualificado como O homem eterno, aquele de antes e que se perdeu no tempo, G. K. Chesterton deixou o seu legado literário com um expressivo dizer no sentido de que o homem é um ser diferente dos demais seres, mas ao mesmo tempo estranho em seu próprio mundo, algo raro. Ele alude ao homem da caverna de Platão. Chesterton defende o homem enquanto ser natural para desmistificar especulações convencionais desse ser divino, as que apregoam que tudo começa devagar e suave e vai se desenvolvendo aos poucos. As sombras que eram reproduzidas na caverna partiram da decisão de uma única pessoa: do homem. Assim, todo e qualquer tipo de história deve começar do homem enquanto homem, algo absoluto e só.
1G. K. Chesterton, O homem eterno. 1ª ed. Ecclesiae: São Paulo, 2014, p. 40.
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