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Por que o PSL inventou um Joaquim Nabuco que não existe?
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Por Lucas Berlanza, publicado pelo Instituto Liberal

Não sou aquilo que se chama pejorativamente “bolsominion”. Jair Bolsonaro não é meu ídolo, não é meu “mito” – nem gosto desse uso lexicográfico, sobretudo quando ele ultrapassa o limite do cômico. Referências individuais de fato, em meu pensamento político, em geral, são aquelas que, como Carlos Lacerda e Roberto Campos, já deixaram este mundo e, portanto, o conjunto e o nível de coerência de suas obras não oferecem mais surpresas e podem ser plenamente apreendidos nas páginas da História. Quem está vivo ainda pode fazer besteira, é humano, cheio de falhas e sujeito a fazer afirmações duvidosas. Posso apoiar esse ou aquele em função de interesses estratégicos e de mensagens ou posicionamentos que considero merecerem representação no debate público e/ou dentro dos poderes da República; se entender que, num dado momento, o importante é combater o aborto ou o desarmamento, por exemplo, elegerei quem defenda tais bandeiras, e assim por diante, sem mitos, deuses nem heróis.

Também não me considero um social liberal no sentido usado por José Guilherme Merquior, tampouco um libertário, faixas de público que são nitidamente os alvos do Partido Social Liberal, particularmente de sua renovadora corrente LIVRES, sucesso inegável no Facebook. Apesar disso, respeito inteiramente a proposta e acredito que é alvissareiro que tais correntes de ideias tenham representação na política partidária.

Dito isso tudo, inquietou-me uma publicação debochada na página do LIVRES comparando o que seria um “liberal raiz” e o que seria um “liberal nutella”, seguindo a tendência de uma brincadeira que está sendo repetida nas mídias sociais. O “liberal raiz”, no caso, seria “um fã de Nabuco” – depreende-se então que seria alguém simpático às ideias do grande abolicionista brasileiro. O “nutella” seria um “bolsominion” – isto é, alguém que apoia Bolsonaro, mas se diz liberal.

O quadro contrapõe características contraditórias. Segundo o PSL, o fã de Nabuco “ama a liberdade alheia e respeita as diferenças”, enquanto o que apoia Bolsonaro “odeia a liberdade alheia e quer ‘oprimir’ as diferenças”. Não direi que a descrição seja incabível a todo e qualquer eleitor do deputado do Rio de Janeiro, hoje no PSC; mas conheço muita gente que vota em Jair mantendo uma postura crítica, acreditando realmente que se trata da melhor opção (ou da menos ruim) dentre as disponíveis para que certas agendas caras à direita ganhem voz. Não me parece nada justo generalizar esse estereótipo.

De todo modo, o ponto que realmente me interessa é aquele em que o PSL alega que o fã de Joaquim Nabuco “defende a liberdade por inteiro”, enquanto o fã de Bolsonaro é “ ‘liberal’ econômico” e “conservador social”. Eu gostaria muito de saber o que é “a liberdade por inteiro”, e em que sentido ela estaria em absoluta contradição com a proposta prudencial dos conservadores em matéria de sociedade e política. Parece-me que o PSL está insinuando que o grande abolicionista do Recife defendia ardorosamente uma “liberdade” abstrata, absoluta, um desprezo por qualquer tradição ou corporificação institucional, uma liberdade desalinhada da ordem, enfim, um slogan etéreo, desvinculado da História e da natureza humana. Se pensam que Nabuco defendia esse partido no campo das ideias, estão enganados, e inventaram um Joaquim Nabuco que nunca existiu.

Ao ler as páginas de sua grande obra Minha Formação, fica claro que o grande luzia (do Partido Liberal brasileiro) mantinha, porém, como seu pai, uma mentalidade, sob muitos aspectos, conservadora, no melhor sentido político da palavra. Certa vez, quando resenhei essa obra, mencionei que lê-la era uma experiência com algumas semelhanças com a leitura de Reflexões sobre a Revolução na França, do grande whig irlandês Edmund Burke, considerado ícone do conservadorismo britânico/moderno. De fato – e essa era uma das críticas que os conservadores brasileiros (saquaremas) faziam a luzias como Nabuco –, ele chegou a se tornar bastante anglófilo, mas amante no Brasil de algo que tínhamos em comum com os ingleses: a monarquia.

Nabuco acreditava que a prudência, a adequação de princípios à experiência histórica, era uma linha de conduta adequada para os negócios de Estado. Católico e amante da estética política aristocrática e imperial, ele tratava a Família Real quase com o mesmo tipo de romantismo e elegância com que Burke fazia deferência à rainha da França, em manifestação de sensibilidade com a agressão por ela sofrida nas mãos dos revolucionários franceses. Expressa, em mais de uma linha, sua aversão a radicalismos destrutivos e a ânsias por rupturas bruscas, identificando nos republicanos de sua época a infantilidade que conduz à tirania; resistiu à República Velha por considerável tempo e, conquanto tenha sido o mais ardoroso dos abolicionistas, se manteve também um cristalino opositor do republicanismo.

Era, portanto, um pensador preocupado com a ordem e com a adequação das instituições, bem como alguém que valorizava o senso estético de uma unidade histórico-conceitual de pátria no Brasil. Expô-lo como defensor da “liberdade por inteiro”, por oposição ao pensamento conservador, é desfigurar a verdade histórica. É encaixar a autoridade intelectual de Nabuco em um slogan frágil, em um conceito vazio que, em uma comunidade política, carece de definição muito mais precisa. Por respeito ao próprio trabalho a que se propõe o PSL, julgo de bom tom que os administradores da página do partido tenham mais cautela.

PS: Em artigo que escrevi para criticar os outros, veja só, permito-me uma crítica tardia a mim mesmo: em diferentes oportunidades, quando escrevi sobre Joaquim Nabuco, mencionei, ainda que de passagem, que ele foi um saquarema antes de se tornar luzia. Não é verdade; essa trajetória foi a de seu pai. Nabuco, desde o começo de sua vida partidária, foi um luzia. Desculpo-me agora pela leve desinformação que provoquei.

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