Por Ricardo Bordin, publicado pelo Instituto Liberal e originalmente no blog do autor
O gigante acordou! Este foi o “sentimento difuso no ar” durante aquelas manifestações que marcaram junho de 2013. Mas o único colosso que nosso povo quase logrou, de fato, despertar, clamando em uníssono pelas mais variadas causas abstratas (diferentemente dos protestos pró-impeachment, orientados a um fim específico), sem um foco objetivo e deixando-se manipular por partidecos de extrema-esquerda, foi o totalitarismo. Eis a lição que ensina Flávio Morgenstern nas 572 páginas de Por Trás da Máscara (editora Record), e que nos leva a concluir que os riscos que corremos por conta de nossa mentalidade assistencialista vão muito além de apenas pagar altos impostos e receber péssimos serviços públicos em troca – como já havia antecipado Hayek em O Caminho da Servidão: jogamos com nossa própria liberdade ao depositar em políticos (sejam eles quem forem) as esperanças de dias melhores.
O movimento de massa que se formou “espontaneamente” (pero no mucho) naquele episódio desencadeado a partir do aumento de vinte centavos na passagem de ônibus em São Paulo tomou proporções e características tais que poderia ter redundado, houvesse sido devidamente capitalizado por eventuais autoproclamados salvadores da pátria, na substituição do governo democrático (ainda que incompetente e corrupto) por uma tirania absolutista – provavelmente alguma versão à brasileira do bolivarianismo chavista.
Vale a pena e recomendo, pois, revisitar passo a passo este episódio histórico, desta feita narrado por um ângulo diverso daquele adotado pela mídia tradicional (que só pôs mais lenha na fogueira, a propósito), mas o que é possível adiantar é que o aspecto que mais chama a atenção no enredo detalhado pelo autor é a facilidade com que o brasileiro médio pode ser levado a crer que reivindicar, junto aos governantes, por “mais Educação, mais Saúde, mais isso, mais aquilo” possa ser o melhor caminho para atingir tais aspirações – quando, na verdade, é tudo o que esses (e seus comparsas de capitalismo de compadrio, incluindo os próprios proprietários de empresas de transporte urbano¹) querem ouvir.
E o que seria capaz de induzir nossa população a depositar, de tal forma, todas as suas fichas justamente na máquina administrativa da qual vive reclamando? Aspectos culturais? Mentalidade anticapitalista pregada em nossas escolas? O fato de que o liberalismo econômico jamais deu as caras em terra Brasilis, sendo, portanto, um ilustre desconhecido?
Há uma extensa gama de fatores responsáveis por essa dificuldade crônica generalizada em entender que requerer “mais direitos” implica em entregar parcelas ainda maiores do que é produzido pelos agentes econômicos aos cofres estatais, e que, a contrário senso, defender a abertura de mercados regulados e programas de privatização significa manter uma fatia maior de nossa renda em nossos próprios bolsos, mas nenhum, por certo, é mais relevante do que o simples fato de que o brasileiro não acredita que, algum dia, ainda que até mesmo o Palácio do Planalto seja transferido para a iniciativa privada, os tributos possam ser reduzidos substancialmente – ou simplesmente reduzidos. E como discordar dele?
Vejamos o caso da concessão de rodovias à empresas privadas. Uma vez que o Estado se desincumbe da manutenção dos trecho concedidos, seria de se esperar uma correspondente diminuição das taxas cobradas dos cidadãos daquele ente federado ou da União, tendo em vista que somente os usuários das estradas passam a arcar com tais custos. Todavia, tal fenômeno jamais é observado. Pelo contrário: a evolução da carga tributária nacional no tempo em relação ao PIB é notável², a despeito da realização de operações de desestatização como a citada.
E assim o é porque os governos das três esferas, tão logo percebem o alívio no caixa proporcionado pela diminuição de despesas, encarregam-se imediatamente de inventar novas formas de empenhar este superávit, sem sequer considerar a hipótese de aliviar o bolso do “contribuinte”, permitindo que mais dinheiro circule entre aqueles que o empregam de forma mais eficiente, por contarem com os mecanismos de estímulo do mercado (lucro e prejuízo).
E assim configura-se a sinuca de bico onde reside o brasileiro: sem condições financeiras de contratar serviços privados como Educação e Saúde justamente por ser extorquido de boa parte de seu salário e por pagar impostos escorchantes embutidos no consumo, nem tampouco lhe sendo possível sustentar ao menos uma nesga de expectativa de que seremos menos sugados pelos detentores do monopólio da força no futuro – ainda que o Estado venha a ser enxugado –, ele passa a suplicar, então, que tais recursos dos quais foi espoliado sejam utilizados para garantir-lhe aquilo que ele não pode adquirir por conta própria por causa do custo do aparato do Estado (o que jamais ocorrerá, pois boa parte dessa verba se perde pelos corredores da burocracia).
Ou seja, uma vez tolhido dos meios para tornar-se independente do governo, o cidadão solicita ainda mais governo, em um ciclo perverso que consiste em passar um cheque em branco para os tecnocratas interessados em “promover o bem estar social” – ao mesmo tempo em que asseguram suas reeleições e foram suas contas na Suíça com a riqueza gerada pelo suor dessa gente entrincheirada entre o inacessível serviço privado e o lastimável serviço público.
Trocando em miúdos: é possível, sim, com muita perseverança dos think tanks nacionais, convencer o brasileiro de que o livre mercado seria capaz de oferecer-lhe serviços melhores e mais baratos do que o governo, na maioria dos setores produtivos, tão logo aquele deixasse de concorrer com empresas estatais pelo mesmo nicho (tal competição, atualmente, transmite a falsa sensação de que somente ricos seriam beneficiados em um hipotético arranjo sem o governo provendo os mesmos serviços, mas tal se dá somente porque esses investidores precisam direcionar seus negócios para classes mais abastadas, visto que aqueles menos favorecidos sempre irão preferir o serviço “gratuito” fornecido pela administração pública, independente de sua qualidade).
Entretanto, se a sanha arrecadatória do Estado não cessa, e continua, assim, impingindo-lhe uma situação financeira deplorável, não há como o brasileiro fazer esta opção pelo privado, pois ele estará “acorrentado” pelos cobradores de impostos ao setor público.
Um dia destes, o Instituto Mises Brasil publicou um ótimo artigo³ propondo o fim da participação do Estado na Educação. Segundo o autor, o governo poderia reduzir, como consequência desta política, em torno de 25% dos tributos cobrados, possibilitando que as pessoas, destarte, pudessem matricular seus filhos nas escolas particulares que seriam erigidas em atendimento à demanda gerada nesta conjuntura – leia-se: mirando em todos os tipos de bolsos e gostos.
Ledo engano: há, sim, um terrível obstáculo para a redução dos impostos no cenário proposto, onde o Estado não mais financiaria a Educação, sem qualquer forma de subvenção, e que se faria sentir facilmente em qualquer outra forma de privatização aventada, e ele se chama establishment político. Como já supramencionado, existe uma espécie de buraco negro nos bastidores da política, que precisa ser alimentado continuamente com dinheiro extraído daqueles que geram valor em nossa sociedade, quer haja fundamento para tal, quer não.
Vale dizer: se não mais houver a justificativa de proporcionar Educação para tributar a população, novos “fatos geradores” serão instituídos imediatamente em substituição aos que forem extintos, e quem sabe até o oxigênio que respiramos seja taxado – mantendo no mesmo patamar a mordida do leão (no melhor das hipóteses). Este leão faminto não vai aceitar um regime forçado repentino, tipo a dieta de Atkins. Não mesmo.
Esbarramos, ainda, em outra adversidade oriunda de tantas décadas de crescimento desordenado da máquina pública: como proceder à transição para um modelo voltado ao livre mercado de forma menos traumática, sem provocar caos e informações desencontradas? O próprio autor do artigo supracitado toca no imbróglio, sem contribuir muito para sua resolução:
O que “quebra as pernas” é exatamente este “se de alguma forma conseguirmos chegar à fase dois”, pois não se trata de um mero detalhe, mas sim de um fator que possui o condão de definir se nossas vidas, uma vez iniciado este ciclo de transformações, melhorariam ou virariam um inferno de uma vez por todas. Arrancar uma árvore com raízes profundas é sempre sinônimo de abrir um enorme buraco e causar transtorno, e apenas afirmar “aguentem que vai melhorar” não parece ser uma providência das mais eficazes.
Apenas um único efeito colateral, citado pelo articulista do IMB, seria capaz de lançar por terra todo o seu projeto: a mencionada “choradeira” dos professores demitidos do dia para a noite causaria forte comoção, reportagens sobre a penúria a que seriam submetidos repentinamente seus familiares seriam veiculadas, histórias de pessoas que somente subiram na vida porque o professor fulano lhes ensinou a ler seriam contadas em tom emotivo, as redes sociais ferveriam e, no dia, seguinte, tudo seria revogado. Sim, bem vindo ao mundo real.
Não é suficiente, portanto, informar que estamos rodando na estrada errada, nem tampouco apontar a rodovia correta a ser seguida. É necessário sugerir formas de mudar de uma para a outra sem precisar atravessar o canteiro e destruir o carro. Tal como já fez, aliás, o próprio IMB, quando elaborou uma proposta para uma reforma definitiva da Previdência, por meio da qual a passagem do atual modelo de esquema Ponzi (pirâmide) para fundos individuais seria gradual, sem solavancos e não exigiria sacrifício de ninguém.
E é por aí mesmo: ou o liberalismo econômico faz um pouso suave em nossas terras dominadas e devastadas há tanto tempo pelo ideário socialista, ou será deportado sem sequer taxiar na pista. Em caso de aterrissagem brusca, os primeiros sinais de instabilidade, típicos do novo contexto e herdados, em verdade, do paradigma estatizante, serão suficientes para que oportunistas culpem o “neoliberalismo” por situações atribuladas eventualmente provocadas pela mudança de padrões.
À vista disso, estágios intermediários entre o estatismo/intervencionismo e o livre mercado precisam ser percorridos, sob pena de voltarmos ao marco zero. No exemplo da Educação, certamente o sistema de vouchers (quando o Estado subsidia a Educação, em escolas particulares, dos filhos daqueles que não possuem condições de pagar as mensalidades) seria a “ponte” ideal para livrar os estudantes da doutrinação marxista e do medonho socioconstrutivismo do comuna Paulo Freire. Na área da Saúde, iniciativas afins também seriam necessárias para dirimir o caos de nossos hospitais sem pôr o carro na frente dos bois e comprometer o processo de purgação de nossa economia – diferente, por certo, de setores como correios e prospecção e refinamento de petróleo, os quais poderiam, tranquilamente, serem transferidos para empreendedores privados de imediato.
Proceder a transformações do gênero “a fórceps” é uma prerrogativa de governantes dotados de poderes excepcionais, como Pinochet (que promoveu a reforma da Previdência, da Educação e abriu o Chile para o comércio exterior, guiado pelos Chicago Boys da Escola de Milton Friedman, enquanto fuzilava mais de 40.000 pessoas) ou Lee Kuan Yew, o homem responsável pelo que Cingapura tem de melhor (liberdade econômica, baixíssimo desemprego e alta renda per capita) e de pior (restrições à liberdade religiosa e de expressão). Alguém aí com pressa de livrar-se da mentalidade estatizante quer sugerir um ditador brazuca para chamar de seu? Nem eu.
Friedrich Hayek foi criticado ferozmente por Ayn Rand por fazer concessões à esquerda em seu Road to Serfdom, e este, por sua vez, censurou diversas ações tomadas por Margareth Thatcher à frente da Inglaterra por não ter sido ela mais incisiva na implantação do pensamento austríaco. A dama de ferro, ainda assim, livrou o Reino Unido do Estado paternalista e centralizador, enfrentando sindicatos poderosos e impedindo que seu país sucumbisse ao Socialismo, com o qual vinha flertando à época. Eis o legado daquela considerada radical pela esquerda e “pouco liberal” por seus correligionários, cujos efeitos benéficos perduram até hoje na Grã-Bretanha.
Melhor, portanto, ir devagar nas pedras para não afundar. Revoluções, desobediência civil e demais soluções açodadas não apenas podem nos fazer dar com os burros n’água, como conduzir-nos a períodos ainda mais sombrios. Cuidado, portanto, com manifestações como a programada para 26/03/2017: em vez de marchar pedindo de tudo um pouco para o governo, que tal pedir menos governo, menos impostos, menos regulações, mais Estado focado em suas atividades-fim? Empresa nenhuma sobrevive hoje se não terceirizar tarefas não relacionadas diretamente com sua produção, e não será diferente com a administração pública. Como asseverou John Locke em seu Segundo Tratado Sobre o Governo: “o maior e principal objetivo dos homens se reunirem em comunidades, aceitando um governo comum, é a preservação da propriedade”.
² https://www.institutoliberal.org.br/blog/uma-breve-historia-tributaria-brasil/
³ http://mises.org.br/Article.aspx?id=2628
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