Sou um republicano, um defensor da solidez institucional de um país, do império das leis, das vias políticas e democráticas para resolver os problemas, evitando assim revoluções sangrentas e imprevisíveis. Sou um liberal com viés conservador, um reformista que rejeita utopias e que morre de medo do populismo redentor, do “povo nas ruas”. Aceito o mundo político e suas imperfeições, pois entendo que a alternativa costuma ser muito pior.
Dito isso, claro que há limites. Quando os “donos do poder” abusam demais da conta, fica tentador, quase irresistível, saltar para o outro lado do muro e fazer coro aos revolucionários. Como já disse antes, meu lado Thomas Paine entra em conflito com meu lado Edmund Burke, e a prudência dá lugar à indignação incontrolável. O fígado, porém, não é bom conselheiro político. É preciso cautela.
Já há, entre os “jacobinos de direita”, quem defenda que a única posição moralmente aceita hoje no país é “uma revolução de grandes proporções”. Da mesma forma que os jacobinos degolaram Robespierre, esses mais incendiários já pensam em colocar o pescoço de Bolsonaro na bandeja, caso ele se recuse a vetar o projeto contra “abuso de poder” aprovado ontem.
Era questão de tempo nesse clima tóxico. Quem cria corvos costuma ter os olhos arrancados. Quem ajuda a criar ambiente revolucionário tende a ser devorado pelas criaturas. Bolsonaro enfrenta um dilema: se vetar, pode ficar refém do Congresso e não aprovar as demais reformas importantes, pois vai sofrer retaliação do “sistema”, num modelo multipartidário sem coalização governista; se não vetar, sua popularidade, especialmente entre a ala mais radical e sua própria militância, pode despencar, pela suspeita de acordão ou covardia diante da situação delicada do filho 01, o senador investigado por corrupção. Se correr o bicho pega, se ficar o bicho come.
Como seria essa revolução? O pessoal que se anima com a ideia deve achar que será com uma metralhadora de curtidas nas redes sociais, ou com bombas de tweets, como ironizou meu xará Rodrigo Nunes. Valente atrás de tela de computador é moleza. Vão tentar implodir o sistema na marra mesmo? São leninistas com sinal trocado? Teremos nossa Primavera Tupiniquim? Vão “ucranizar” o Brasil?
Questões em aberto, e que geram alguma apreensão. Mas é inegável que a classe política está brincando com fogo. Conversei em off com um juiz federal sobre o projeto, e eis o que ele me disse:
Tem uns 9 tipos penais ali (artigos 9, 10, 15, 27, 32, 34, 36, 37 e 43) que são tão abertos ou mal explicados que parecem ter nítido objetivo de constranger. Eu diria que vários deles são inconstitucionais, mas, nos tempos atuais, a Constituição é só um detalhe, que pode ser observado ou não. E estou só indicando os que afetam a atuação dos juízes. Por alto, os artigos 13 e 17 caem no mesmo problema, só que afetam a atuação policial. Juiz, policial e promotor aguenta ameaças de criminosos (inclusive de colarinho branco). Faz parte da profissão, e quem não quer correr o risco, melhor seguir outra carreira. Mas o próprio Estado ameaçando com prisão é outra coisa. A curto prazo, corre o risco de gente comprometida mudar de carreira (eu, ao menos, não descarto isso). No médio e longo prazo, até a base do Judiciário pode virar reduto de carreiristas politiqueiros (o que é o sonho dos políticos). Pra quem celebra o “amadurecimento das instituições”, vai chegar a hora de mudar o discurso se essa lei for sancionada deste jeito, ou assumir publicamente seu cinismo! As instituições funcionaram cambaleando no Brasil desta década, se apoiando de todo jeito pra não cair. Agora ficará difícil se sustentarem de pé. E um detalhe: não acho que juízes devam ser imunes a serem punidos por abuso de autoridade ou outras condutas criminosas (é até bom que assim seja, sem corporativismos). Mas isto deve ser feito para punir os maus juízes, sem tolher a independência para julgar dos que trabalham sério e ficam ao arbítrio da criminalização de condutas genéricas e pouco claras.
A situação é da maior gravidade, e alguns já falam em tomar as ruas novamente – dessa vez contra o próprio Bolsonaro, se ele se curvar diante do “centrão”. Sobre essa questão das instituições versus heróis, Carlos Alberto Sardenberg escreveu uma boa coluna hoje, na linha que eu venho defendendo sobre a necessidade de heróis. Eis um longo trecho:
Se o STF quebrou o gelo e colocou a corrupção na mira do Judiciário, a Lava-Jato culminou o processo. Formalmente, trata-se de uma operação, uma simples força-tarefa — “reles” tarefa, gostariam alguns — mas alguém duvida que, na sociedade, tornou-se uma instituição superior?
Sergio Moro também não disputou eleição, não fez campanhas, mas se tornou uma forte liderança moral e política. Um herói, no modo como Joaquim Barbosa. A resistência à Lava-Jato revela, em setores jurídicos, uma combinação de inveja e ciúme. Como pode um simples juiz de primeira instância — de novo, um “reles” juiz? — tornar-se uma figura nacional? Não entenderam que Moro encarna uma profunda mudança — e mudança para o bem. Ou entenderam e não estão gostando.
[…]
No fundo, a legião dos adversários da Lava-Jato está incomodada porque que a operação se tornou uma instituição nacional, tanto que não se consegue encerrá-la, e com alguns heróis de peso. Mas por isso mesmo, há um esforço para limitar o sistema de investigação.
Dias Tofolli, que certamente não é um herói, mas o presidente de uma instituição, praticamente suspendeu as atividades do Coaf. O ministro Alexandre de Moraes suspendeu fiscalizações da Receita federal envolvendo 133 agentes públicos, inclusive os ministros Gilmar Mendes e o próprio Dias Tofolli, e ainda mandou suspender auditores fiscais.
E agora surgem essas conversas para alterar a estrutura desses órgãos. Ora, sem Coaf e sem Receita, não tem Lava-Jato. Só falta proibirem as operações da Polícia Federal. Seria esse o triunfo das instituições? Na verdade, seria o triunfo dos anti-heróis.
São tempos estranhos e perigosos. Repito: minha personalidade é avessa a revoluções. Não só a personalidade: minha convicção após muito estudo. Mas há casos em que a corda é tão esticada pelos que abusam do poder que basta uma faísca para a situação sair de controle. Os que querem destruir a Lava Jato estão acendendo uma caixa inteira de fósforo nesse paiol de pólvora.
Espero que ainda seja possível salvar nossas instituições e até fortalece-las. Para tanto, será preciso contar com a ajuda de alguns heróis sim, que tenham a coragem de enfrentar o “sistema”, peitar os “defensores” das instituições, carcomidas, fragilizadas, subvertidas em instrumentos de defesa da impunidade. O tempo dirá quem vai vencer esse cabo de guerra…
Rodrigo Constantino