O Iluminismo continental ofereceu ao mundo a figura do intelectual secular: o sábio racionalista que não apenas interpreta o mundo como deseja, na célebre formulação marxista, transformá-lo! Dito assim, a ambição não tem nada de especial: é legítimo transformar o que não funciona; como é legítimo preservar o que mostrou a sua utilidade ao longo do tempo. O problema só acontece quando as premissas são invertidas: arrasar o que funciona em nome de uma «filosofia da vaidade».
A expressão pertence a Edmund Burke nas suas Reflexões sobre a Revolução em França e lida, em especial, com Jean-Jacques Rousseau. Seria possível respeitar alguém que declarava um amor «abstracto» pela Humanidade – mas que tinha uma conduta privada (e parental) simplesmente deplorável?
A pergunta de Burke, que provoca um certo prurido em certos espíritos sofisticados, tocava num ponto fundamental da reflexão ética: os homens devem ser julgados pelos seus exemplos – ou pelas suas belas palavras?
Optar pelas palavras é sempre uma decisão arriscada. Até porque não existe ditador ou sanguinário que, nos seus discursos, não faça grandes apologias da liberdade, da igualdade e da fraternidade – enquanto escraviza, empobrece e executa o seu povo tão amado. Antes de nos deixarmos embriagar pela «tirania das boas intenções», talvez não fosse inútil indagar o carácter do «profeta» que as vende.
Rodrigo Constantino, um dos mais lidos e influentes liberais brasileiros, com presença regular na grande imprensa do outro lado do Atlântico (as suas colunas na revista Veja e no jornal O Globo são amadas e odiadas em partes iguais, como convém a qualquer ser pensante), regressa a todos estes temas para escrever, com pena afiada, sobre os novos «filósofos da vaidade». E essa tribo, em sociedades mediáticas, está hoje confinada a artistas e «intelectuais» que escolhem os temas politicamente correctos do momento para erguerem os seus púlpitos e as suas carreiras.
Claro que, para sermos rigorosos, existe uma questão prévia a todos esse circo: por que motivo devemos levar a sério roqueiros ou actores mentecaptos quando eles desatam a criticar as exactas sociedades «burguesas» e «capitalistas» que os alimentam faustosamente?
Rodrigo Constantino ocupa-se da questão para responder da forma mais certeira: o facto de alguém ter talento para cantar ou representar não significa que essa competência seja extensível a assuntos políticos e económicos. Se seria ridículo imaginar Milton Friedman ou Friedrich Hayek a cantar rock’n’roll, não será igualmente ridículo, para não dizer grotesco, ouvir com seriedade Bono ou Bob Geldof nas suas divagações ideológicas?
Mas Rodrigo Constantino vai mais longe e procura explicar as causas profundas que alimentam a «filosofia da vaidade». A ignorância pode ser a explicação mais benigna – e, claro, mais tratável. Mas não é de excluir que o ressentimento, o niilismo e aquele «nojo-de-nós-próprios», feito de culpa e masoquismo, contribuam também para que artistas e «intelectuais» persistam na nobre missão de «serem filhos de Marx» e «transarem com a Coca-Cola», para usar as palavras de Robert Campos aqui citadas com cirúrgica precisão.
Sem falar do óbvio: a militância nas causas politicamente correctas – o antiamericanismo demencial; o ódio visceral a Israel, a única democracia de todo o Médio Oriente; a defesa de um multiculturalismo relativista que tudo aceita porque nada condena – é um precioso oxigénio para qualquer conta bancária.
O livro de Rodrigo Constantino é uma pièce de résistance contra o caldo mendaz em que vive o progressismo radical. Mas é também um convite para que se escreva em Portugal uma denúncia tão inteligente, corajosa e por vezes hilariante sobre os nossos próprios «filósofos da vaidade». Exemplos não faltam.
João Pereira Coutinho
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