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Há duas narrativas atraentes sobre o que se passa com a política nacional. Numa delas, Bolsonaro venceu com o apoio maciço do “povo brasileiro”, deixando-se de lado o fator do antipetismo, para tocar uma agenda de reformas liberais na economia e conservadoras no costume, que estariam amplamente respaldadas pela população, mas um Congresso dominado pela “velha política”, repleto de corruptos do establishment, não permite muitos avanços.

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Já na outra versão dos fatos, um governo minoritário, que venceu uma eleição majoritária surfando a onda do antipetismo numa eleição plebiscitária sobre o lulismo, que também se alimentou do clima da antipolítica dinamizado pela Lava Jato, não se mostra capaz de formar base sólida no Parlamento, em parte porque não aceita o toma-lá-dá-cá de antes (presidencialismo de coalisão), e nesse vácuo deixado o Congresso assume maior protagonismo, como deveria ser numa democracia.

Não acho que ambas sejam excludentes, e encontro bases para defender cada uma delas. Talvez a verdade esteja em algum lugar entre esses dois extremos. Sim, Bolsonaro recebeu quase 58 milhões de votos, mas é bobagem acreditar que essa gente toda endossa suas principais agendas necessariamente. Houve um fator grande de antipetismo, ou seja, impedir a volta da quadrilha de Lula era a prioridade para muita gente, talvez a maioria.

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Não obstante, é fato que Bolsonaro representa um esforço para se fazer política de uma forma diferente, e isso gera reação das “forças do pântano”, dos representantes do status quo, do “sistema”, do “deep state”, do establishment. Diante desse quadro, muitos bolsonaristas passam a demonizar o Parlamento e endeusar o presidente, confundindo sua função com a de um “déspota esclarecido”, uma espécie de imperador que incorpora a “vontade popular”.

O jacobinismo presente nessa mentalidade é evidente, e salta aos olhos quando o guru da turma declara que nosso Parlamento existe SÓ para impedir os avanços, enquanto repete que o presidente é o líder “amado pelo povo”. Essa narrativa é incompatível com a democracia, e cada vez mais adeptos dessa visão saem do armário autoritário e admitem o desprezo pela democracia, clamando por um “imperador do bem”. É um perigo!

Daí minha constatação de que a verdade provavelmente esteja no meio do caminho. Bolsonaro merece apoio em muitas das suas pautas, que terão forte resistência do “sistema” pelos motivos errados. Mas não é desejável uma defesa de um presidente que passe por cima do Congresso feito um trator, pois devemos fortalecer nossas instituições, não joga-las no lixo. Se Bolsonaro recebeu quase 60 milhões de votos, os deputados e senadores, em conjunto, receberam muito mais, e de forma mais representativa do que é o país em sua complexidade.

Fernando Schuler, em sua coluna de hoje na Folha, comentou sobre esse “outono do Executivo-príncipe”, alegando com humildade que ainda temos muito a aprender sobre a nova situação. É preciso lembrar que há fenômenos mundiais em curso, como as redes sociais e a descrença nos representantes políticos, principalmente num país como o nosso que sequer tem voto distrital. Diz o cientista político:

Esta semana vimos ruir uma das principais promessas de campanhade Bolsonaro. O governo fez o que pôde. O presidente mobilizou sua base mais fiel, via redes sociais, e lançou mão de um argumento vindo direto do século 18, vinculando a posse de armas à defesa da democracia. Mas não deu.

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O governo perdeu, por óbvio, porque não possui uma base orgânica no Congresso. Boa parte dos analistas políticos, muitos com bons argumentos, enxergam isso como um grave problema. Se o governo tivesse cumprido as tarefas do presidencialismo de coalizão, teria aprovado com facilidade o seu decreto das armas. Como não fez o trabalho de casa, deu no que deu.

De minha parte, não vejo isso como grande problema. Acho positivo que o Congresso, sem faca no pescoço ou distribuição de recursos políticos por parte do Executivo, rejeite a flexibilização, via decreto, do Estatuto do Desarmamento.

É irrelevante aqui discutir o mérito da questão. Há quem seja a favor e contra a liberação de armas. A democracia é assim. Acho engraçado quem julga que a democracia só é boa quando suas ideias e seus políticos favoritos ganham o jogo. Não é o meu caso. Ninguém é dono da verdade na democracia, ainda que isso soe como uma ideia terrível para muita gente.

Schüler lembra, ainda, que o mesmo Congresso aprovou outras medidas do governo, e que tem defendido com afinco a reforma previdenciária, ainda que não a mesma do ministro Paulo Guedes. Ele lança, então, sua tese:

Minha hipótese é que vai se cristalizando um novo modus vivendi na relação Executivo-Congresso. O Congresso vem aprovando e recusando matérias com maior autonomia e com base em consensos provisórios. E a democracia não parece estar à beira do abismo por causa disso, ao contrário do que tendemos a achar após algum tempo inalando toxina ideológica e raiva política na bolha digital.

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Numa linha parecida foi William Waack, em sua coluna no Estadão. Para o experiente jornalista, o Congresso mostra sua força diante de um Poder Executivo mais fragilizado:

A derrota que o Senado impôs a uma das pautas caras para o presidente Jair Bolsonaro – a derrubada dos decretos que flexibilizam o porte e a posse de armas no Brasil – é apenas o fato mais recente no claro esforço das casas legislativas de aumentar as próprias prerrogativas reduzindo o poder da caneta do chefe do Executivo. 

O STF também cerceou a autoridade do Executivo em vários exemplos recentes (privatizações, extinção de conselhos), mas a ação do Legislativo tem um sentido político evidente ao diminuir a capacidade do Executivo em alocar recursos por meio do Orçamento e de limitar o uso de medidas provisórias.

[…]

O presidente brasileiro preserva um poder imenso de ditar agendas políticas, mas é evidente a rapidez com que diminui sua capacidade de se afirmar sem uma base sólida no Congresso. Bolsonaro pode achar (como indica que está achando) que é capaz de levar adiante seus planos mesmo à frente de um governo minoritário. No caso da reforma da Previdência, porém, é bom lembrar que os presidentes das casas legislativas abraçaram a agenda reformista, e não foi o caso na questão das armas.

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[…]

É notório que os suspeitos de sempre no mundo político, e dentro do Legislativo, se alegram visivelmente com as dificuldades políticas agora no colo do ministro da Justiça, Sérgio Moro – a quem muitos pretendem dar um troco. Em outras palavras, misturam-se os ratos que pretendem escapar da campanha anticorrupção com uma parte significativa do Congresso (que tem a mesma legitimidade que o presidente) que caminha para tentar tirar o País do tipo de regime por alguns chamado de democracia hiperpresidencial.

Maia e Alcolumbre estão querendo dizer que Executivo e Legislativo só conseguirão governar juntos. “Não há vitória absoluta”, diz Maia. Não parecem ter combinado tudo isso com Bolsonaro. Para quem, ao que tudo indica, a ficha ainda não caiu.

São pontos interessantes e que demandam reflexão. O cenário é difícil, novo, e exige certa humildade dos analistas. Não é razoável cair numa narrativa binária e maniqueísta, por mais sedutora que seja. Bolsonaro não é a incorporação do “povo brasileiro” lutando contra corruptos por todos os lados, assim como o Congresso, apesar de ter direito a um maior protagonismo numa democracia como a nossa, infelizmente ainda está cheio de ratos.

Haverá concessões de todos os lados, vitórias e derrotas, agendas aprovadas e derrubadas, ou alteradas, e é assim que a vida segue numa democracia. Não há espaço para sonhar com utopias, com uma revolução purificadora e redentora. O nascimento de um Brasil mais livre, próspero e decente levará tempo, seu parto não será indolor, e sua gestação será longa e com muitos riscos. Quem achou o contrário se iludiu e prega “soluções mágicas” e, na prática, autoritárias.

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Rodrigo Constantino