Com muita fanfarra, o governo Dilma anunciou seu novo programa de crescimento, focado nas ferrovias. Mas não atacou o cerne da questão: a estatal Valec, envolta em escândalos de corrupção. Em reportagem de José Casado, o GLOBO mostra como o TCU listou irregularidades no programa de concessão de ferrovias:
Há duas semanas, o Tribunal de Contas da União (TCU) decidiu fazer uma advertência formal à Casa Civil da Presidência da República, ao ministério e à agência de transportes terrestres sobre o bilionário programa de investimentos em ferrovias, apresentado nesta terça-feira pelo governo — o terceiro desde 2007.
“É insuficiente o grau de governança da política pública do ‘Programa de Investimentos em Logística/Ferrovias’” — avisou o tribunal listando irregularidades encontradas durante oito meses de auditoria no ministério, na agência, nas estatais Valec Engenharia e Empresa de Planejamento e Logística, responsáveis pelo plano.
As fragilidades detectadas, acrescentou, “poderão comprometer a viabilidade econômico-financeira do programa — e por consequência a sua efetividade — e das outorgas de concessões, permissões ou autorizações decorrentes. Se traduz, em última análise, em risco de desperdício de recursos e de entraves ao desenvolvimento nacional”.
Ao aprovar essa advertência pública ao governo federal, na segunda-feira, 25 de maio, os ministros do tribunal fizeram questão de registrar em ata um aviso adicional sobre futuras auditorias em concessões ferroviárias: “Na hipótese de permanência do cenário evidenciado, a falta de estudos técnicos e econômicos será levada em consideração quando da fiscalização dos processos de outorgas de concessões, permissões ou autorizações baseados no modelo do ‘PIL/Ferrovias’, e (o TCU) poderá indicar manifestação desfavorável.”
Ou seja, o novo bebê de Rosemary, digo, de Dilma, já nasce doente. É tudo feito nas coxas, meia bomba, para gerar factoides ou para criar novos mecanismos de desvio de recursos públicos, o esporte preferido do PT, pelo que vemos de escândalos nos últimos anos. Os números anunciados são bilionários, sempre de olho na propaganda. Mas falta o mínimo de transparência, de competência e de cuidado do lado estatal.
Em Privatize Já, dediquei um grande capítulo ao setor ferroviário, mostrando como o entrave é justamente a estatal Valec, a presença ainda forte do governo. Segue um trecho:
A história das ferrovias no Brasil começou com Irineu Evangelista de Souza, o Barão de Mauá, empreendedor de visão que conseguiu uma concessão de Dom Pedro II para a construção e exploração do primeiro trecho de interligação ferroviária do país. Isso ocorreu em 1854, e desde então o setor viveu momentos de altos e baixos.
Em 1858 foi inaugurada a segunda estrada de ferro, em Pernambuco, marcando a entrada dos ingleses no setor. A Inglaterra já era palco de acelerado crescimento da malha ferroviária, desde o sucesso comercial da Stockton and Darlington Railway, em 1825. Desde então, ricos investidores foram atraídos ao setor pelos bons dividendos, e passaram a investir pesado em novas linhas. Se em 1830 havia somente 100 milhas de ferrovia no país, em 1860 este número já superava as 10 mil milhas.
[…]
Nos Estados Unidos, foi o setor privado quem fez a construção das ferrovias deslanchar também. Em 1832, foi inaugurada na Filadélfia a fábrica de locomotivas Baldwin Locomotive Work, que se transformou na mais importante do mundo. Seu fundador, Mathias Baldwin, era um joalheiro, que ficou famoso pelas locomotivas a vapor que construiu.
O grande nome do setor seria James J. Hill, que ficou conhecido como “o construtor de impérios”, tamanha sua voracidade na expansão das ferrovias de sua propriedade. Entre 1883 e 1889, Hill construiu várias ferrovias importantes, apesar de todos os obstáculos, muitos criados pelo próprio governo.
[…]
De volta ao Brasil, a exportação de café foi fator determinante no surgimento de novas ferrovias, sempre cruciais para o escoamento dos produtos para o mercado internacional. Sem uma infraestrutura decente e uma logística de ponta, país algum é competitivo no mundo globalizado.
Os grandes problemas do setor começaram na Era Vargas, que decretou medidas intervencionistas, como o controle de tarifas e a taxação da importação de trilhos. Junto com isso, o crash da Bolsa de Nova York, o negócio azedou. Para piorar a situação, o Plano Nacional de Viação, de 1944, lançava as ferrovias em uma concorrência desleal e artificial, capitaneada pelo estado, que apostava pesado no transporte rodoviário, mais ineficiente.
Em 1957, começaria a funcionar a Rede Ferroviária Federal, com a incorporação de 22 estradas de ferro em péssimo estado. Parece justo o título de “pai dos pobres” para Getúlio Vargas, tamanha a quantidade de pobres que seu populismo nacionalista pariu.
A malha ferroviária nacional foi reduzida de 37 mil para 29 mil quilômetros, tendo sido concedidos quase a totalidade deles, por meio de leilões realizados a partir de 1996, para concessão à iniciativa privada. Mesmo em condição precária, com boa parte sendo sucata, começava a surgir uma luz no fim do túnel. E não era um trem em nossa direção.
Bastou tirar a administração dessas ferrovias do estado e passá-la para o setor privado, que a melhora foi dramática. Os acidentes despencaram mais de 80% desde então, enquanto o volume de carga transportada mais que dobrou.
[…]
Voltando às ferrovias privatizadas, o desempenho das empresas gerou uma arrecadação de R$ 2 bilhões para o governo federal entre 1997 e 2003, enquanto nos dez anos que antecederam a desestatização, o setor acumulou um déficit para os cofres públicos de quase R$ 4 bilhões.
Desde 1997 até 2011 foram investidos R$ 30 bilhões nas malhas ferroviárias existentes concedidas à iniciativa privada. Para 2012, devem ser investidos mais de R$ 5 bilhões. O volume total de carga transportada aumentou quase 90% desde então. A produção ferroviária, medida pela TKU (Tonelada Quilômetro Útil Transportada), mais que dobrou neste período, com uma taxa anual de crescimento de 5,5%, bem acima do PIB.
A América Latina Logística (ALL), sozinha, investiu quase R$ 4 bilhões no Brasil de 2007 a 2011. A carga transportada pela empresa de 1997 a 2011 teve um crescimento de 7 vezes! A MRS Logística experimentou incremento de quase 80% entre 2003 e 2011. A empresa investiu mais de R$ 1 bilhão apenas em 2011. No mesmo ano, ela foi classificada pela revista Exame como uma das 150 melhores empresas para se trabalhar. Seus mais de 5.500 colaboradores (eram 2.600 em 2003) não têm do que reclamar da privatização.
[…]
Por outro lado, a parte do setor que continua sob os cuidados do governo vai de mal a pior. A estatal Valec, responsável pela construção da Norte-Sul, fez um levantamento em junho de 2012 que apontou uma necessidade de despesa extra na casa dos R$ 400 milhões para consertar falhas na estrutura e nos trilhos.
Erros grosseiros foram encontrados, tanto nos trilhos como nos pátios logísticos. O atual presidente da empresa, José Eduardo Castello, declarou em entrevista ao jornal Valor Econômico: “Tocaram os trilhos e não fizeram os pátios, ou seja, hoje não tenho onde carregar o trem. Ainda que toda a linha estivesse pronta, não teria onde estacionar para receber e entregar a carga”.
A ferrovia teve sua construção iniciada em 1987, durante o governo Sarney. Duas décadas depois de total abandono, as obras foram retomadas em 2007, ano em que a Vale assumiu, por R$ 1,4 bilhão, em pleno governo do PT (como veremos mais à frente) a concessão dos mais de 700 quilômetros da parte norte da ferrovia.
Com cerca de dois mil trabalhadores envolvidos nas obras e com um orçamento total de US$ 6,7 bilhões, a Norte-Sul é um dos maiores empreendimentos de transporte do mundo. Não surpreende mais nenhum leitor deste livro o fato de que tantos recursos sob controle estatal produzam atrasos, superfaturamento e claros sinais de incompetência.
O Tribunal de Contas da União (TCU) tem acompanhado de perto as obras, chegando a recomendar sua paralisação por conta de irregularidades encontradas. Em 2010, o TCU exigiu que a estatal Valec fizesse a correção de diversos itens do edital da ferrovia, levando a uma redução de quase R$ 170 milhões no orçamento original. O TCU verificou que o dormente, para dar um exemplo, custava R$ 300 para a estatal, enquanto na Transnordestina, negócio privado, ficava por R$ 220.
A polícia já constatou superfaturamento de pelo menos R$ 129 milhões só na construção de trechos da ferrovia em Goiás. A apuração trecho a trecho aponta sobrepreço de 20% no orçamento inicial. O ex-presidente José Francisco das Neves, o Juquinha, chegou a ser preso pela Polícia Federal na operação “Trem pagador”, no começo de julho de 2012.
Ele comandou a empresa de 2003 a 2011, período em que seu patrimônio deu um salto espetacular. Quando chegou à Valec, Juquinha tinha patrimônio declarado de R$ 1,5 milhão, e o último dado somava R$ 18 milhões, sendo que, pelos cálculos dos investigadores, só os bens identificados até o momento da prisão chegavam a R$ 60 milhões!
O próprio governo Dilma reconheceu o fracasso total do modelo de atuação da Valec, que vinha conduzindo de forma direta os investimentos da União na expansão da malha ferroviária do país. Em meados de agosto de 2012, o governo decidiu reformular seu papel, retirando da Valec a administração dos investimentos. A estatal passou a ser um órgão de gestão e fiscalização das ferrovias.
Como a mentalidade do governo petista ainda é muito estatizante, a Valec vai garantir a compra da carga dos projetos privados. Isso significa, na prática, socializar eventuais prejuízos, enquanto os lucros permanecem privados. O PT não conseguiu se livrar totalmente de seu ranço estatizante, mesmo dando passos à frente.
Como podemos ver, o ranço permanece. O PT faz concessões tímidas ao bom senso, com as concessões ao setor privado, uma forma de privatização. Mas o faz de forma equivocada, pouco transparente, com muita presença estatal ainda, e claro, de olho apenas no populismo da medida, na propaganda. Foi assim com os PACs, será assim com o PIL. É o Programa de Aceleração da Corrupção, que nunca entrega os resultados prometidos.
Se o governo quisesse realmente fazer o setor ferroviário deslanchar, tudo que ele deveria fazer é se retirar, sair da frente, reduzir as amarras burocráticas, e deixar a iniciativa privada trabalhar em paz!
Rodrigo Constantino
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