Bater no presidente americano é o esporte predileto da grande imprensa, e ela abusa desse direito com Trump, o que obviamente não fazia nos tempos de Obama. Melhor assim: imprensa não pode ser subserviente ao poder, pois deve ser seu fiscalizador, cobrar coerência, promessas, apontar falhas. Infelizmente, a imprensa escolhe quase sempre os piores motivos para atacar Trump, como escolhia os piores para defender Obama.
Entre as maiores qualidades de Trump está justamente seu desprezo pela mídia torcedora e politicamente correta. Trump ter vencido foi importante mais pelo que ele condena do que defende. A chacoalhada que deu no establishment foi importante para a própria democracia. Mas isso não quer dizer que ele vá fazer um bom governo. Espero que sim, e tenho alguma esperança. Mas ele terá que domar seu pior lado. Não, não é o “racista” ou “preconceituoso” que a imprensa inventou, o do muro para a maior segurança do país ou de restrições a imigrantes muçulmanos, mas o protecionista, que ele realmente tem.
Quando li um de seus livros, tive essa clara impressão: ele defende muitas bandeiras liberais, mas escorrega feio quando o assunto é comércio internacional. O ranço mercantilista está claramente lá, quando ele trata cada déficit comercial como uma espécie de expropriação do povo americano. Importar é ruim, exportar é bom: resume-se assim a visão equivocada de seu nacionalismo, algo que Adam Smith já refutara no século XVIII.
O entusiasta de Trump pode argumentar que o livre comércio não tem sido tão livre, que a globalização virou um “globalismo” coordenado por elites poderosas, como eu mesmo já argumentei. Mas calma: o fato de existir manipulação de outros governos não quer dizer que o governo americano deve manipular também os mercados. Se um governo cria barreiras que prejudicam seu povo, isso não quer dizer que seja racional o nosso governo criar outras barreiras que prejudicam nosso próprio povo.
Muitos alegam que o livre comércio tem que ser recíproco para ser benéfico. Bastiat afirma que pessoas com tal mentalidade são protecionistas em princípio, mesmo que não reconheçam, e são apenas mais inconsistentes que os protecionistas puros, que são por sua vez mais inconsistentes que os defensores da abolição completa de produtos estrangeiros. Para provar seu argumento, ele utiliza uma fábula de duas cidades, Stulta e Puera, que construíram uma grande estrada as conectando. Após o término da construção, Stulta teria reclamado que os produtos de Puera estavam inundando o seu mercado, e criou o cargo assalariado de encarregados pela obstrução do tráfego dos importados. Logo em seguida, Puera fez o mesmo, e o resultado era mutuamente perverso.
Até que um homem velho de Puera, suspeito até de receber pagamento secreto de Stulta, disse que os obstáculos criados por Stulta eram maléficos a Puera, o que era uma pena. E que os obstáculos criados pela própria Puera também eram maléficos, novamente uma pena. Completou que não havia nada que pudessem fazer quanto ao primeiro problema, mas que poderiam solucionar a outra parte, criada por eles mesmos. Houve forte reação, e o acusaram de sonhador, utópico e até “entreguista”. Alegaram que seria mais difícil ir que vir pela estrada, ou seja, exportar que importar. Isso colocaria Puera em desvantagem em relação à Stulta, como as cidades na beira dos rios estão em desvantagem frente às montanhosas, já que é mais complicado subir que descer.
Só que uma voz disse que as cidades na beira dos rios prosperaram mais que as montanhosas, causando alvoroço. No entanto, era um fato histórico! Infelizmente, para o povo de Puera, decidiram que tais cidades tinham prosperado contra as regras, e optaram pela manutenção dos obstáculos, em nome da “independência nacional” e da proteção da indústria doméstica contra a competição “selvagem”. E os consumidores continuaram sendo sacrificados para o benefício de alguns produtores privilegiados, como sempre ocorre nas medidas protecionistas.
O protecionismo defendido por Trump é equivocado, apesar da manipulação de outros governos. Fará mal para o povo americano. Chega a ser engraçado, além de sinal dos tempos, quando a China reclama desse protecionismo, ou quando a esquerda passa a ser a maior defensora da globalização. Claro que é pura hipocrisia, já que o governo chinês é o primeiro a praticar guerra comercial e a esquerda continua detestando a globalização. Mas a resposta de Trump não está certa, e não vai beneficiar os americanos.
Se a China é realmente um ponto fora da curva, da Alemanha não se pode dizer o mesmo. O país é competitivo no mercado global por mérito próprio, por reformas nas leis trabalhistas que as flexibilizaram no começo da década de 2000, por investimento em capital humano. A resposta do governo alemão às propostas protecionistas de Trump, portanto, foi perfeita e merece reflexão.
“Quem quiser crescimento, e creio que este governo será amistoso com o crescimento, deve estar a favor dos mercados abertos”, disse Schaeuble ao “Wall Street Journal”. “O protecionismo pode dar vantagens no curto prazo, mas quase sempre é danoso no longo prazo”. Ele está certo. Se os americanos querem que os alemães comprem seus carros e que os próprios americanos comprem carros produzidos nos Estados Unidos, que façam carros melhores e mais baratos então!
O caminho é investir em capital humano, comprar brigas com os sindicatos, flexibilizar as leis trabalhistas e reduzir o custo legal, os impostos. Ou seja, o caminho é o liberalismo, não o protecionismo, que apenas ataca o sintoma e pune o próprio consumidor americano. Nós, brasileiros, conhecemos bem demais as mazelas do protecionismo, nosso default desde sempre. Nossa indústria automotiva é o mais velho infante do país, protegido há sete décadas com o discurso de “competição desleal” e “indústria em sua infância”.
O Facebook trouxe à minha memória hoje um post de 2012 que vem bem a calhar aqui. Trata-se de uma conhecida piada, que diz muito sobre a importância da globalização. É a diferença entre o inferno e o paraíso:
PARAÍSO
é aquele lugar onde:
o humor é britânico,
os cozinheiros são franceses,
os mecânicos são alemães,
os amantes são brasileiros
e tudo é organizado pelos suíços.
INFERNO
é aquele lugar onde:
o humor é alemão,
os cozinheiros são britânicos,
os mecânicos são franceses,
os amantes são suíços
e tudo é organizado pelos brasileiros.
Agora todos já entendem a relevância dos conceitos de divisão de trabalho e vantagens comparativas, ensinados por Adam Smith e David Ricardo. É preciso deixar o mercado funcionar livremente, além das fronteiras nacionais, para se obter o melhor resultado. A esquerda hipócrita defende o “globalismo”, não a globalização. Mas isso não quer dizer que a melhor resposta seja o protecionismo nacionalista, bandeira típica da esquerda. Diga “não” ao protecionismo! Viva a globalização!
Rodrigo Constantino