“E se entrar outro corrupto? Aí é simples: a gente vai derrubando. Um, dois, três, quatro, cinco, dez, vinte, até que você da sociedade pare de fazer merda e coloque alguém decente na presidência”. Essa foi a fala do deputado Eduardo Bolsonaro num vídeo de desabafo gravado em seu carro, para justificar seu voto desta quarta.
O voto era complicado mesmo, pois a extrema-esquerda, como já disse, montou uma narrativa que deixou todos os demais numa grande sinuca de bico: se correr o bicho pega, se ficar o bicho come. Ou se votava ao lado dos radicais comunistas, fazendo seu jogo, ou corria o risco de ter a pecha de “defensor de bandido” e “incoerente hipócrita”. Vitória de Pirro.
Mas gostaria de falar mais sobre o que disse Eduardo. Se for para levar totalmente a sério essa retórica purista, não há política que resista, não há sistema que sobreviva. O deputado está em busca da pureza, uma “pureza fatal”, que não faz parte da vida real, menos ainda da vida política. Se seu pai fosse eleito, não governaria um dia com essa mentalidade, sem concessão alguma aos que estão no poder.
Aliás, a fala é simplista e foca 100% na pessoa, na figura do presidente, que deveria ser um santo, em vez de focar no próprio sistema, no mecanismo perverso de incentivos, como na concentração de poder e recursos no estado. Sei que corro o risco de ter meu raciocínio distorcido, mas é um risco que preciso correr, pois vejo um grande perigo nessa postura.
Não é relativismo moral, algo com que jamais compactuei, até porque quem me conhece sabe do meu rigor ético até excessivo. Sou pouco flexível com “malfeitos” de todo tipo, por menor que sejam. Mas daí a pregar essa pureza infantil, e de forma claramente radical e jacobina, de quem não liga a mínima para a estabilidade e quer ir degolando uma, duas, dez, vinte cabeças até se encontrar “o incorruptível”, vai uma longa distância, que separa a pessoa razoável de um fanático moralista ou um hipócrita oportunista.
Robespierre fazia parte do primeiro grupo. Esses são ainda mais perigosos do que os outros, que apenas usam o discurso da pureza ética para se promover. Segue, portanto, uma resenha que fiz para a revista Voto de uma biografia do líder jacobino, que pode ajudar a ilustrar meu ponto central aqui:
Em nome do povo
“Amar a Humanidade é fácil; difícil é amar o próximo.” (Nelson Rodrigues)
Poucas pessoas causaram mais mal à humanidade do que aquelas que se imbuíram sinceramente da crença de que lutavam em nome do povo. Quando este conceito abstrato passa a ser confundido com a própria pessoa, quando ela não mais consegue se distinguir do tal “povo”, eis onde mora o grande perigo. O nobre fim – libertar o povo de todas as opressões e mazelas – passa a justificar quaisquer meios. E ninguém melhor do que Robespierre para ilustrar este risco.
Durante os últimos cinco meses de vida, quando concentrou um poder praticamente tirânico sobre a França, mais de duas mil pessoas foram guilhotinadas em Paris, uma quantidade mais de cinco vezes superior ao que havia sido morta nos onze meses que precederam o reinado do terror pessoal de Robespierre. Na biografia de Ruth Scurr sobre esta importante figura da Revolução Francesa, o próprio título já resume de forma sucinta a imagem desse perigo: Pureza Fatal (Editora Record, 2009).
Não teria sido a hipocrisia, ou mesmo as ambições materiais que tornaram Robespierre uma ameaça tão grande à liberdade, e, sim, sua total convicção de que ele e o povo eram uma só coisa. O Incorruptível, como era conhecido, seria a mão sangrenta executando com fanatismo as ideias de Rousseau. Robespierre, vestido com a capa da pureza moral, seria o instrumento da “vontade geral”. A visão de uma sociedade ideal, livre dos “pecados” da aristocracia e da miséria, faria com que ele acreditasse, de forma insana, ser o veículo da Providência que levaria a França para um futuro perfeito.
Os pobres haviam se tornado uma abstração coletiva, santificados por sua retórica, e seriam libertados por ele, o escolhido do povo. Nada poderia ficar no caminho entre ele e seus ideais. Quem eventualmente discordasse de alguma coisa, ainda que relativamente insignificante, seria visto como um “inimigo do povo”. Aquele que questionasse seus métodos era um traidor da Pátria, um contrarrevolucionário. Até mesmo seu antigo amigo e aliado Danton seria vítima de sua paranoia e acabaria guilhotinado também. A soberania popular precisava predominar, já que a vontade do povo é tudo, a fonte da Justiça. E ele, Robespierre, falava em nome do povo.
Robespierre nunca demonstrava arrependimento de nada, jamais reconhecia publicamente algum erro. Como diz a historiadora, “se ele estivesse errado, o povo também estaria, e Rousseau assegurara-lhe que esse simplesmente não poderia ser o caso”. Mirabeau teria percebido essa perigosa convicção, comentando: “Esse homem vai longe, ele acredita em tudo o que diz”. E, de fato, Robespierre foi mais longe do que qualquer um poderia imaginar. Ele foi um dos grandes responsáveis pela escalada de violência durante a Revolução, pelo degolamento do rei, pela prisão de milhares de inocentes, enfim, pela radicalização dos jacobinos que lançou o país numa guerra civil sangrenta. Em nome da paz, Robespierre ajudou a criar o Tribunal Revolucionário, que acabaria condenando inúmeras pessoas à guilhotina pelos motivos mais banais.
Nada disso passou despercebido pelos seus oponentes, que o acusaram de várias coisas diferentes. O marquês de Condorcet, um dos deputados girondinos, escreveu que Robespierre tinha apenas uma missão: falar incessantemente; “ele cria discípulos”. Acrescentou ainda que ele “diz-se amigo dos humildes e dos fracos, deixa-se seguir por mulheres e pelos pobres de espírito, recebendo a adoração deles com seriedade”. Enfim, Robespierre seria um “padre e nunca será nada além de um padre”. Ele pregava para uma seita, despertava a reverência dos ignorantes, que o viam como instrumento para sua sede de violência. Robespierre ajudou muito a abrir os portões da barbárie. O povo “puro” se mostraria, de fato, uma turba de vândalos e assassinos.
O julgamento popular pregado por Robespierre seguia a ética do linchamento. Quem precisa de tribunais legais quando se tem o povo para julgar? Robespierre, defendendo a execução do rei, escreveu: “Um povo não julga como um tribunal. Ele não determina sentenças, mas arremessa raios; ele não condena reis, mas os atira no abismo; tal justiça é tão atraente quanto a justiça dos tribunais”. Adotando a estratégia do duplipensar descrita por Orwell, Robespierre tentou se convencer que violência era paz. Na defesa da permanência do Terror, ele escreveu: “O terror nada mais é do que justiça, imediata, severa e inflexível. Ele é, portanto, uma emanação da virtude, resultando da aplicação da democracia às necessidades mais prementes do país”. Para aquele que não se importava com indivíduos, apenas com o “povo”, o terror passou a ser um meio necessário para seu nobre fim.
Nada poderia abalar sua crença de que sua vida era realmente dedicada ao melhor para o povo, nem mesmo o banho de sangue em Paris e a miséria espalhada por toda França. Mais cansado e desiludido, Robespierre constatou que “existem poucos homens generosos que amam a virtude por si só e desejam ardentemente a felicidade do povo”, naturalmente se incluindo nesse grupo seleto. O fracasso da Revolução não poderia ser fruto dos meios adotados por ele; tinha que ser culpa dos próprios homens, os quais não eram tão virtuosos como ele próprio.
A mesma postura seria vista nos comunistas mais tarde, que, apesar da desgraça que sua ideologia trouxe ao mundo, jamais aceitariam culpar o próprio sistema defendido. O experimento social de se criar o “novo homem” justifica todo tipo de atrocidade para essas pessoas. Trata-se de uma verdadeira tirania da visão, na qual somente eles possuem o monopólio da virtude. Quem não compartilha de suas crenças é um inimigo do povo, um alienado, um egoísta insensível, um traidor da classe.
Quantos crimes cometidos em nome da igualdade e liberdade! O povo teria mais chances de viver melhor se aprendesse a desconfiar de todo aquele “profeta” que jura falar em seu nome, que pretende guiá-lo ao paraíso. “O que sempre fez da Terra um inferno foi o fato de o homem tentar torná-lo seu paraíso”, disse o poeta Höelderlin. Em nome do povo, as maiores atrocidades foram praticadas.
Rodrigo Constantino
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