O calor no Rio de Janeiro, dizem, está insuportável. Posso muito bem imaginar. Vivi na “cidade maravilhosa” por 38 anos, e sei bem como o calor carioca pode ser asfixiante. A sensação térmica pode chegar a quase cinquenta graus, o que é simplesmente ridículo, absurdo. Enquanto o cérebro frita, os cariocas usam piadinhas para não surtar de vez. Algumas imagens têm circulado pelas redes sociais, como estas:
Claro que não é só no Rio. Porto Alegre, durante o verão, passa a ser carinhosamente chamado de “Forno Alegre” pelos próprios gaúchos. Além das imagens, a turma brinca com a política também. Quem estava reclamando do calor se lembrou do ex-governador Sergio Cabral preso em Bangu, o lugar mais quente do Rio. Sem ar-condicionado, trancado numa cela, Cabral deve estar quase arrependido de seus crimes nesse momento. E o carioca pede até mais calor, só para se vingar…
Brincadeiras à parte, agradeço estar no “inverno” de Weston nessas horas, com uma temperatura civilizada de uns trinta graus (motivo de profunda inveja da turma que mora em Nova York ou Boston nessa época do ano). Mas eis a questão: qual seria a influência desse clima tropical em nossa “malandragem” típica, em nosso jeitinho brasileiro? Vários pensadores relevantes consideraram o impacto do clima na cultura. Em Brasileiro é otário? – O alto custo da nossa malandragem, onde trato do fenômeno do jeitinho brasileiro, incluí o clima entre as possíveis origens, apesar de concluir que não há fatalismo algum aqui. Segue o capítulo em questão:
Sou daqueles que acreditam que Willis Carrier deveria ser canonizado. Para quem não sabe, ele está por trás da criação do ar-condicionado, uma das invenções mais espetaculares da história. Trabalhando para uma metalúrgica, em 1902, Carrier desenvolveu o que se considera o primeiro aparelho condicionador de ar. Acendo uma vela para ele, ainda que em pensamento, sempre que sou obrigado a enfrentar o ridículo calor carioca.
Já tentei imaginar algumas vezes, embaixo de um sol escaldante, um típico carioca refletindo sobre Nietzsche ou Schopenhauer e o sentido da vida, mas confesso ter dificuldade. Insiste em vir à mente a imagem de um Homer Simpson dizendo: “Não enche o saco e me dá logo mais uma cerveja!”
É duro cobrar reflexões mais profundas em meio a esse calor desértico. O sol deve afetar a nossa racionalidade de alguma forma. Aceito, portanto, a tese de muitos pensadores sérios de que o clima exerça influência na cultura, mas não compro a de que a determina, até porque não acredito em fatalismos e destino traçado, nem para indivíduos nem para nações.
Tivemos ilustres pensadores, como Machado de Assis, Joaquim Nabuco e Visconde de Cairu, entre tantos outros, bem anteriores ao advento do ar-condicionado. O calor tropical nunca os impediu de pensar, de trabalhar, de produzir ideias. Não posso compactuar com a imagem dos brasileiros como um bando orientado sobretudo ao desejo de se refrescar nas praias, bebendo água de coco.
Jared Diamond, no conhecido Armas, germes e aço, sustenta a tese determinista de que o clima está na base do desenvolvimento mais acelerado no Crescente Fértil, tornando a região mais próspera do que as demais. É absolutamente legítimo discordar de parte ou até de quase todas as suas conclusões, mas parece inegável que alguma influência a natureza exerceu.
Diamond está longe de ser o único a colocar no clima um peso demasiado. “A pátria do capital não é o clima tropical com sua vegetação exuberante, mas a zona temperada”, disse Karl Marx. É verdade que, como em tudo mais, estava errado nisso também. E o fato de ser alemão nunca o impediu de preferir o ócio vagabundo ao trabalho árduo para efetivamente produzir capital, tema de sua obsessão.
Não acredito em determinismo de tipo algum, seja genético, social, climático ou histórico. Nenhuma força exógena ao homem determina seu destino. Como disse Viktor Frankl, mesmo como prisioneiro de nazistas: “Entre o estímulo e a resposta, o homem tem a liberdade de escolha”. É a crença no livre-arbítrio humano, da qual compartilho.
Mas isso não quer dizer, naturalmente, que o homem não sofra influências que possam contribuir muito para suas escolhas e, portanto, trajetória. Nesse contexto, o clima sempre foi bastante citado como fator relevante para a formação de diferentes culturas. A natureza atua – para o bem ou para o mal – na moldagem da mentalidade predominante de um povo.
Eduardo Giannetti da Fonseca compilou uma série de reflexões sobre o tema em seu livro de citações. O filósofo utilitarista Bentham, por exemplo, disse que, “entre as circunstâncias externas pelas quais a influência da educação é modificada, as principais são aquelas agrupadas sob a rubrica do clima”. Acrescentou:
Nos climas quentes, a saúde do homem tende a ser mais precária que nos frios; sua força e rijeza, menor; seu vigor, firmeza e constância mental, menor; e portanto, indiretamente, sua quantidade de conhecimento é também menor. O pendor de suas inclinações é diferente, e isso de modo mais notável no tocante à sua maior propensão para os prazeres do sexo e à precocidade da etapa da vida em que essa propensão começa a se manifestar: suas sensibilidades de todos os tipos são mais intensas; suas ocupações habituais mais para a lassidão que para a atividade; a constituição básica de seu corpo é, provavelmente, menos forte e menos rija; a constituição básica de sua mente é menos vigorosa, menos firme e menos constante.
Vários outros pensadores depositaram no clima uma importância elevada na formação cultural de um povo. Montesquieu, por sua vez, disse que, “nos países frios, há menor sensibilidade aos prazeres; nos temperados, ela é um pouco maior, e, nos países quentes, ela é extrema”. E ainda:
O calor do clima pode ser tão excessivo que o corpo perde todo o vigor. A prostração alcança, dessa maneira, até mesmo o espírito: nenhuma curiosidade ou nobreza de propósito, nenhum sentimento generoso. Todas as inclinações se tornam passivas, e a preguiça se confunde com a felicidade.
Kant foi bastante direto:
A excelência das criaturas pensantes, sua rapidez de apreensão, a clareza e a vivacidade dos seus conceitos, os quais chegam a elas pelas impressões do mundo externo, e a capacidade de combinar esses conceitos e, em suma, toda a extensão da sua perfeição tornam-se mais altas e mais completas na proporção direta da distância do seu lugar de moradia até o sol.
David Hume também responsabilizou o clima pela situação nos trópicos:
Por que razão as pessoas que vivem entre os trópicos ainda não conseguiram desenvolver nenhuma arte ou civilidade, nem aprimorar política alguma em seu governo, nem disciplina militar alguma, enquanto poucas nações nos climas temperados se viram privadas desses benefícios? É provável que uma causa desse fenômeno seja o calor e a constância do clima na zona tórrida, que tornam menos necessárias para os seus habitantes as roupas e as casas, e assim eliminam, em parte, aquela necessidade que é sempre o maior estímulo ao trabalho e à invenção.
John Stuart Mill, ao constatar que as nações detentoras dos melhores clima e solo não eram as mais ricas ou as mais poderosas, também apelou à justificativa climática:
A vida humana nessas nações pode ser mantida com tão pouco que os pobres raramente sofrem de ansiedade, e, nos climas onde o mero existir é um prazer, o luxo que eles preferem é o do repouso. Energia, sob o apelo da paixão, eles a possuem em abundância, mas não aquela que se manifesta no trabalho contínuo e perseverante. E, como eles raramente se preocupam o bastante com objetivos remotos para estabelecer boas instituições políticas, os incentivos à industriosidade são ainda mais enfraquecidos pela proteção imperfeita dos seus frutos.
Malthus acreditava que “o selvagem dormiria para sempre sob sua árvore se não fosse arrancado do seu torpor pelo ardume da fome ou pelo incômodo do frio”. Ele escreveu: “Naqueles países onde a natureza é mais redundante na produção espontânea, não encontramos habitantes que se notabilizem pela agudez de intelecto. A necessidade foi chamada, com muita verdade, de a mãe da invenção”.
Thomas de Quincey disse: “Ao cooperar, por meio das tentações que oferece, com o langor luxuriante dos nativos, o clima se torna uma maldição desabilitadora dos melhores instintos da população”. Emerson aderiu a essa explicação: “O solo difícil e os quatro meses de neve tornam o habitante da zona temperada do norte mais sábio e mais capaz que o seu par abençoado pelo perpétuo sorriso dos trópicos”. Alfred Marshall foi mais um nessa linha: “Um clima quente prejudica o vigor. Ele não é de todo hostil ao trabalho intelectual e artístico superior, mas impede as pessoas de se tornarem aptas a suportar um esforço muito intenso de qualquer tipo por maior tempo”.
Como se vê, vários pensadores importantes depositaram no clima alguma responsabilidade pela maior indolência, preguiça ou passividade observada nos trópicos, que seriam ingredientes para nossa “malandragem”, nosso improviso, a arte de levar a vida de forma mais lúdica e sem muita reflexão e lógica. Por oposição, a necessidade de conviver num ambiente natural mais hostil teria colaborado para que os povos do norte desenvolvessem maiores aptidões à produção.
No Brasil, um pobre com poucos recursos consegue não apenas sobreviver, mas pode também desfrutar de um lazer gratuito como a praia. Nos países escandinavos, a probabilidade de esse mesmo pobre morrer de frio é grande. Fora isso, o clima tropical sem dúvida é mais propenso a desmobilizar ambições e a manter as pessoas numa condição de quase completo dolce far niente. É uma espécie de convite tentador ao hedonismo, ao carpe diem.
Nada disso, porém, é uma imposição inexorável. A Austrália é um bom exemplo de que é possível um povo prosperar num clima tropical. A Flórida, com calor parecido ao do Rio de Janeiro, é a “América Latina que deu certo”. O clima pode ser uma barreira ao progresso capitalista, mas não é um obstáculo intransponível. Roberto Campos afirmou: “Os que creem que a culpa de nossos males está em nossas estrelas e não em nós mesmos ficam perdidos quando as nuvens encobrem o céu”. Ele estava certo.
A responsabilidade pelo atraso cultural brasileiro, por nosso jeitinho, pela mentalidade que enaltece a “Lei de Gérson”, não pode ser jogada nos ombros dos “loiros de olhos azuis” ou do Deus Sol. Ela é somente dos próprios brasileiros. Afinal, podemos mudar para melhor, independentemente do clima. É uma questão de atitude, dos valores que endossamos. A receita foi dada pelo colega de Campos, Eugênio Gudin: “Os países da América Latina não precisam criar uma civilização. Ela já foi criada pela Europa nos últimos quatro séculos. Cabe-nos assimilar essa civilização”. Mas malandro que é malandro quer inventar a roda. De preferência, uma quadrada, para mostrar aos otários como é que se faz.
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