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Qual o espectro que ronda a Europa e quais são as lições de 2016?

El Gobierno de España dijo el viernes que ha aprobado el paquete de ayuda a Grecia por un importe total de 9.800 millones de euros. en la imagen, una pancarta gigante en protesta contra las medidas de austeridad de Grecia junto al Partenón, el 4 de marzo de 2010. REUTERS/Pascal Rossignol (Foto: )

Muitos estão preocupados com o avanço do “populismo” da “extrema-direita”, com os ataques à “globalização”, com os fenômenos do Brexit e Donald Trump, que podem significar, na França, a vitória de uma Le Pen da vida. Falam na era da “pós-verdade”, como se antes, sob o domínio quase hegemônico da esquerda, houvesse sinceridade na política. Já escrevi vários artigos e cheguei a gravar vídeos sobre o tema. A leitura da imprensa mainstream e dos principais analistas sobre estes acontecimentos tem sido bastante equivocada.

É verdade que há radicais xenófobos se animando com o curso dos eventos, mas não é isso, tampouco um ataque à globalização em si, o que tem levado a esses resultados, e sim uma imensa insatisfação legítima de boa parte da população com o establishment, com a burocracia sem rosto, com o poder concentrado, com a mídia politicamente correta, com o “capitalismo de compadres”, com o multiculturalismo.

Enquanto as próprias lideranças políticas se mantiverem cegas e surdas diante deste fenômeno, o risco de um verdadeiro populismo radical será crescente. O professor João Carlos Espada, em sua coluna de hoje no Observador, comenta sobre o espectro que ronda a Europa hoje, lembrando quais são as vantagens das democracias liberais:

Em suma, o que distinguiu as democracias parlamentares (basicamente as de língua inglesa) que sobreviveram ao colapso das democracias europeias nos anos de 1920-30 não foi sobretudo a adopção desta ou daquela política substantiva particular. Foi a capacidade de absorver as disputas entre posições rivais e de as domesticar através da civilizada rivalidade parlamentar.

Por outras palavras, foram capazes de ouvir e dar expressão parlamentar aos sentimentos populares. Por isso, foram capazes de esvaziar os partidos anti-democráticos, bem como os simplesmente populistas. (Isso mesmo voltou a acontecer no Parlamento britânico na semana passada: por esmagadora maioria, os deputados votaram a favor de “respeitar o resultado do referendo” que optou pela saída da União Europeia — embora muitos deles sejam efectivamente contra essa saída).

Nesta perspectiva, é muito possível que o espectro que verdadeiramente ronda a Europa não seja o que está a ser usualmente descrito. Talvez não seja apenas o espectro do populismo e do nacionalismo. Talvez seja o espectro da radicalização mútua entre radicais inimigos das “elites” e radicais inimigos do “populismo”.

Os democratas “Burkeanos” (uns mais ao centro-direita, outros mais ao centro-esquerda) devem recusar essa “dicotomia infeliz”. E, tal como Edmund Burke no seu tempo, devem tentar promover o “equilíbrio do navio em que todos navegamos” — o da democracia constitucional pluralista, enraizada na concorrência civilizada entre propostas rivais nos Parlamentos nacionais.

Pontos importantes, sem dúvida. O crescente afastamento entre as elites no poder e o povo representa o maior perigo, pois cria o ambiente propício para as aventuras antidemocráticas. Foi essa também a mensagem do excelente editorial da revista britânica The Spectator. Quem não compreender que os fenômenos Brexit e Trump são uma reação a uma ordem insustentável vai acabar jogando mais lenha na fogueira do populismo.

É justamente para evitar uma onda perigosa de populismo exacerbado que essa ordem global vigente, com demasiado poder concentrado nas elites, precisa mudar. Ou seja, a mídia mainstream entendeu tudo errado! Diz a revista, puxando da história de quase dois séculos atrás:

When The Spectator was founded 188 years ago, it became part of what would now be described as a populist insurgency. An out-of-touch Westminster elite, we said, was speaking a different language to the rest of London, let alone the rest of the country. Too many ‘of the bons mots vented in the House of Commons appear stale and flat by the time they have travelled as far as Wellington Street’. This would be remedied, we argued, by extending the franchise and granting the vote to the emerging middle class. Our Tory critics said any step towards democracy — a word which then caused a shudder — would start a descent into chaos. On the contrary, we said, the choice was between reform or a ‘revolution of the most sweeping character’.

After some struggle, the British political system’s sense of self-preservation kicked in and the Great Reform Act of 1832 was passed. That year was tumultuous, certainly, but less so than the revolutions that went on to sweep so much of unreformed Europe.

[…]

It might well be that 2016 will be remembered as a year when one decaying order finally collapsed and a new one took its place. New, of course, doesn’t necessarily mean better. What happens next in Britain remains an open question: Brexit is not (as some of its more naive cheerleaders suggest) a guarantee of a better future. It is merely the removal of a constraint. Whether we flourish or flounder will depend on how well, or badly, Theresa May and her successors handle the transition.

It will take a decade, possibly longer, before Brexit can be judged to be a success or a disaster. But the first signs are encouraging and populism, for now at least, is one problem Britain does not have.

[…]

There is no doubt that the old rules of western politics are being rewritten, the clichés disproved and old electoral playbooks abandoned. But this is not in itself a reason to panic. There can be a tendency among politicians to confuse their own disorientation with the end of the world — when, in fact, the world is doing rather well. By most objective measures of human progress, this has been yet again the best year ever. It might go against our instincts and against much of the news agenda — but most of us have never had firmer grounds for expecting, or for wishing others, a happy new year.

Ou seja, as reformas precisam ser realizadas, até mesmo algumas um pouco mais radicais, justamente para impedir as revoluções sangrentas, as rupturas abruptas e, aí sim, extremamente populistas e antidemocráticas. É nesse contexto que Niall Ferguson, num ato de louvável coragem e honestidade intelectual, reconheceu seu erro no combate ao Brexit, alegando que tinha se deixado levar por sua amizade com o primeiro-ministro e o ministro da Fazenda, e que sacrificou seus princípios por conta disso:

For years I have argued that Europe became the world’s most dynamic civilisation after around 1500 partly because of political fragmentation and competition between multiple independent states. I have also argued that the rule of law — and specifically the English common law — was one of the “killer applications” of western civilisation.

[…]

The reality was that the EU’s leaders richly deserved Brexit and British voters were right to give them it. First, the warnings I and others gave about European monetary union back in the 1990s have been wholly vindicated. Having a single currency has made it extremely difficult for southern Europe to recover from the financial crisis.

Second, Europe’s supposedly common foreign policy has been a failure. In the Arab “Spring”, European governments intervened just enough to make the Islamist winter worse. In Ukraine the Europeans overreached without having the credibility to deter the Russians.

Third, the EU institutions mishandled the financial crisis. Today, long after US banks were sorted out and the economy returned to growth, the crisis drags on in Italy.

Nor is that all. Last year EU leaders — and especially Angela Merkel — made a disastrous mess of the refugee crisis precipitated by the Syrian civil war, turning it into a mass migration crisis. They wholly failed to secure the EU’s external border. Finally, they utterly misread the mounting public dissatisfaction — not only in Britain — with the consequences of unfettered free population movement.

Sim, as lideranças avaliaram muito mal a insatisfação popular com todas as suas medidas recentes, com o modelo vigente, e o maior risco seria justamente insistir nessa rota, preservar o mesmo modelo centralizador. O nacionalismo pode ser perigoso quando exacerbado, mas não há uma necessidade de ele sempre ser assim, xenófobo. Conservadores como Roger Scruton pensam o contrário: sem uma dose de nacionalismo, as liberdades correm ainda mais risco (escreverei mais sobre isso em outro artigo).

Em suma, os fenômenos que estão tirando o sono das elites e dos jornalistas podem muito bem representar os anticorpos da democracia contra seus inimigos, não a maior ameaça em si a ela. Claro, o veneno está sempre na dosagem. Mas é crucial compreender que o grande perigo para as democracias liberais seria nada mudar, ou pior, dobrar a aposta numa receita internacionalista controlada por uma minoria poderosa sem elo algum com os verdadeiros anseios populares.

Rodrigo Constantino

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