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Racha na Bolsolândia: corporativismo policial e embaixada para filho dividem seguidores

Falo muito em bolsonaristas e percebo a confusão de alguns leitores. O que é um bolsonarista? Alguém que votou em Bolsonaro? Que apoia em linhas gerais seu governo? Não e não. Eu me encaixo nos dois quesitos e estou longe de ser um bolsonarista. Este adota a postura de apoio incondicional, trata o presidente como uma espécie de mito, chega mesmo a endeusar o político e costuma só elogiar (ou bajular) o governo, passando pano em todos os seus evidentes defeitos.

O bolsonarista pode não ser um cego fanático ou alienado, mas alguém que abraçou a premissa de que vivemos numa guerra tribal de tudo ou nada, que a esquerda comunista está sempre na iminência de voltar ao poder. Basta aceitar essa premissa para se tornar uma espécie de jacobino de direita, endossar o nacional-populismo da turma do Steve Bannon, achar razoável utilizar os mesmos métodos do adversário. Afinal, a alternativa é o retorno dos safados!

Nesse grupo há vida inteligente, mas que sucumbiu à histeria paranóica do “guru” Olavo de Carvalho e perdeu a capacidade de enxergar o cinza. O problema é que as consequências dessa premissa vão ladeira abaixo até o sujeito se tornar apenas um torcedor de time, um militante engajado que apela constantemente para o duplo padrão hipócrita. Aquilo que até “ontem” ele condenava no inimigo ele aplaude no “seu time”. É a morte da análise independente.

Conheço alguns com esse perfil. Um deles é meu amigo Leandro Ruschel, com quem já tive boas conversas e debates. De uns tempos para cá o clima andou mais pesado, justamente porque eu passei a atacar mais esse jacobinismo radical, enquanto ele praticamente se recusava a apontar as falhas do bolsonarismo. Folgo em saber, portanto, que até Ruschel tem elevado o tom das críticas. Talvez Bolsonaro esteja esticando demais a corda.

Numa série de tweets, Ruschel criticou com firmeza o corporativismo do PSL e do próprio presidente na questão dos privilégios para a categoria policial na reforma previdenciária:

Muito ruim esse tratamento especial para policiais da União na Reforma da Previdência. O corporativismo é a praga brasileira. Ainda mais grave é o apoio do presidente a tal medida. Assim, a nova política começa a ficar parecida com a antiga.

Por que um policial federal poderá se aposentar muito mais cedo e com salário integral, diferente dos outros brasileiros? Totalmente injusto e moralmente abominável.

Lembrem, os policiais que estão ganhando esse privilégio na Reforma da Previdência não são os PMs que trocam tiros com bandidos todo dia e ganham R$ 2.500 por mês. Estamos falando da nata da categoria.

Além da questão corporativista, lembrando que Bolsonaro foi “líder sindical” dessa categoria durante seus sete mandatos como deputado federal, focando num nicho do eleitorado, a escolha de indicar o próprio filho Eduardo para ser Embaixador nos Estados Unidos pegou muito mal e alimentou a cizânia no bolsonarismo.

Justiça seja feita, enquanto cerca de metade passava pano até nesse absurdo, a outra metade criticava sem rodeios, mostrando que nem todos são “gado”, ou seja, membros de seita. Ruschel fez uma enquete em sua página e vimos que mesmo na “Bolsolândia” a maioria se colocou contra essa indicação esdrúxula:

Eu entendo o receio que muitos têm de criticar o governo: sentem medo de, com isso, dar munição para os oportunistas safados da esquerda. É um medo legítimo, mas não pode justificar a morte da isenção, da independência. Nem tudo é guerra tribal, final de campeonato entre dois times, ou segundo turno eleitoral.

Subir o tom das críticas à medida que Bolsonaro aumenta a quantidade de erros não significa se arrepender de pregar o voto nele, ou considerar seu governo ruim em geral. A alternativa era o PT! Mas essa linha de defesa é tosca e mostra como o bolsonarismo pode ser medíocre também: ser melhor do que o PT é seu grande trunfo agora? É se nivelar por muito baixo, não?

Acho saudável para nossa democracia que mais e mais gente, mesmo entre bolsonaristas, esteja percebendo que não devemos relaxar quando se trata de políticos. O conservadorismo bebe do ceticismo, da prudência, da cautela, não do messianismo, do culto à personalidade ou da revolução radical que prega uma “nova era”.

Se cada vez mais gente se der conta de que Bolsonaro é apenas mais um, com algumas características melhores do que os demais, outras piores, e que existe a chance de fazer um bom governo com viés mais direitista, então ótimo: vão defender o que deve ser defendido sem se curvar diante de um clã político tratado como incorruptível e infalível por alguns.

É bom ver o Ruschel falando que a nova política se parece com a velha: existe política, ponto, e não podemos ser ingênuos aqui. Daí a importância das instituições, dos mecanismos de incentivos, dos pesos e contrapesos, da imprensa livre. Não podemos achar que um indivíduo vai mudar tudo na marra, representando “o povo”, pois isso não é realista e flerta com o perigoso autoritarismo.

Agora só falta Ruschel reconhecer os méritos de Rodrigo Maia na reforma que Bolsonaro tenta desidratar com seu corporativismo. Seria um passo importante para a independência de análise…

Rodrigo Constantino

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