Como exemplos de novos grupos totalitários, hoje mais descentralizados do que os anteriores, Razzo cita os movimentos das “minorias”, os black blocs, os invasores de terras rurais ou urbanas, toda militância que precisa profanar valores tradicionais, depredar, usurpar a propriedade privada, destruir símbolos religiosos. Todos eles podem indicar “uma quantidade generosa do ímpeto totalitário porque revelam essa lógica da perversão: a desorganização da cultura correspondente a uma vontade de potência destruidora e anárquica”.
O esquema mental sugerido por Razzo é o seguinte: “Quando deformada, tal como é a imaginação idílica e diabólica, ao ser confrontada com a realidade, a imaginação totalitária se transforma em ato puro de desilusão e ressentimento. A desilusão, difusa, transforma-se em angústia. A angústia, em medo. E o medo, em violência redentora”. Por não suportar a angústia da vida, o totalitário parte para a destruição em nome da redenção total.
Como o mundo só não é melhor porque o outro não permite (“o inferno são os outros”, dizia Sartre), então é necessário eliminar todos os obstáculos do caminho, a começar por esse outro. Podem ser os judeus para os nazistas, os kulaks para os soviéticos, os capitalistas para os comunistas, cada mente totalitária escolherá seu bode expiatório, aquele que impede a realização de seus sonhos, de sua felicidade.
Os ideais totalitários, assim, plantam as sementes das tragédias. “Como Raskólnikov, o perturbado personagem principal de Crime e castigo, de Dostoievski, às vezes não somos capazes de resistir à tentação de nos imaginarmos como o exemplo histórico de homens extraordinários, que estão acima do bem e do mal”. E como “homens extraordinários”, temos então o direito de eliminar os “piolhos” de nosso caminho, esses entraves para a construção de um “mundo melhor”.
Todos precisamos de uma fuga para esse mundo frio e sem sentido. O problema é quando tal esperança é depositada na política. Como diz Razzo, “A arte talvez fosse o lugar mais indicado e adequado para realizarmos os nossos mais elevados ideais desde que a política fique fora disso”. Na mesma linha, Mario Vargas Llosa concluiu: “Devemos buscar a perfeição na criação, na vocação, no amor, no prazer. Mas tudo isso no campo individual. No coletivo, não devemos tentar trazer a felicidade para toda a sociedade. O paraíso não é igual para todos”.
Por fim, vale notar que o livro de Razzo conta com uma beleza particular: tem um tom autobiográfico. Relata sua experiência de adolescente ateu e seguro de suas “ideias racionais”, que recomendou um aborto a um casal de amigos. O feto era um “piolho” que poderia ser eliminado pela visão utilitária. A coisa mais racional a fazer era se livrar do estorvo. Hoje, Razzo dedica um bom tempo ao combate do aborto. Seu livro também pode ser visto como sua tentativa de se “purificar”, de se redimir desse “pecado”, e valorizar a vida humana, sagrada, ainda que limitada, imperfeita.
Afinal, o argumento de que podemos matar para evitar sofrimento é perigoso: “A tentação do diabo poderia ser levada até as últimas consequências: para acabar com o sofrimento no mundo, só mesmo acabando com o homem. Mas não desejamos acabar com o homem”. Não! Não somos niilistas. Nós desejamos valorizar o homem, cada homem, cada vida, como uma finalidade em si mesma. É quando esse princípio começa a ser relativizado que nasce a fagulha da imaginação totalitária.
Rodrigo Constantino