Com o esvaziamento da experiência religiosa na “era secular”, um tipo específico de esperança tem sido depositado na política. E quando a política deixa de ser mediação do possível num mundo imperfeito e passa a ser um instrumento redentor em busca da perfeição terrestre, abre-se o caminho para regimes totalitários e assassinos.
Antes de se chegar ao estado totalitário, porém, ocorre todo o esforço intelectual de legitimá-lo. É “a imaginação totalitária”, uma forma de ver o mundo, e o tema do excelente livro de estreia de Francisco Razzo pela editora Record. Martim Vasques da Cunha, autor de A Poeira da Glória, vai direto ao ponto na orelha que escreveu para a obra:
Ninguém está a salvo de ser o carrasco de si mesmo e dos outros. Independente da ideologia que você defende, seja de esquerda, de direita ou de centro, Razzo nos mostra que sempre criamos as jaulas voluntárias que amamos e, o pior, idolatra-se a própria pantera que nos devorará em breve.
Trata-se também de um livro que, ao mesmo tempo em que dialoga com William James e Eric Voegelin, mostra a importância de se estudar um filósofo brasileiro como Paulo Eduardo Arantes ou então de saber melhor o que *não* pensa alguém como Vladimir Safatle. E faz isso sem impor a sua própria visão sobre o mundo; ele apenas fala sobre a realidade de maneira desapaixonada.
Razzo nos leva a uma reflexão profunda acerca de nossos pensamentos, nossa visão de mundo e ideologia, e faz tudo isso “com o rigor de um scholar e a força argumentativa de um polemista”. Apesar da rica bibliografia e das fartas citações, com ênfase em pensadores como William James, Irving Babbit e Michael Oakeshott, o autor consegue um resultado digerível para o público leigo em filosofia.
Todo o esforço de Razzo apela à nossa razão, mas com a premissa básica de que devemos usá-la para reconhecer seus próprios limites. “As atitudes políticas derivam muito mais das expectativas produzidas pela força do imaginário do que pelo ordenamento prudente da razão”, diz. Ainda assim, como escreve o autor, essa imaginação totalitária deriva de uma crença na infalibilidade da razão:
Todas as tentativas de superar o pluralismo objetivo das relações sociais, dado como fato incontornável e incomensurável, não passaram de um atentado da razão que se entregou eroticamente às promessas da imaginação de um final feliz. Na modernidade não houve o eclipse da razão; houve, pelo contrário, o mergulho profundo da razão na luz que brotava de si mesma.
Como resumiu com ironia Karl Kraus: “Refreia as tuas paixões, mas toma cuidado para não dar rédeas soltas à tua razão”. Quando se está imbuído de uma crença escatológica, supostamente racional ou científica, quando se age em nome da “salvação da Humanidade”, os indivíduos de carne e osso se tornam irrelevantes por um processo mental. Todo o sofrimento causado a alguém passa a ser justificado em nome dessa Utopia. O crente político está sempre mergulhado em sua “certeza”, e disposto a tudo para levar seu projeto purificador adiante.
A singularidade do outro diante de si desaparece. São todos meios sacrificáveis para seu nobre fim. As abstrações coletivistas servem de escudo contra o real sofrimento imposto a seres humanos. O raciocínio turvado, dominado por paixões, elimina os freios éticos na mente. O próximo passo é eliminar pessoas. “O ímpeto que move e direciona a ação de um intelectual ideologicamente engajado não leva em consideração um homem de carne e osso e os dilemas de sua vida interior, mas uma ideia geral de homem”, escreve Razzo.
Num mundo cheio de “som e fúria”, sem sentido, sem esperança, desprovido de Deus, construímos narrativas que servem como alternativa ao que o mundo natural nos oferece. “A imaginação consiste na condição de possibilidade dessa fuga”, explica. Não há mais que se aceitar os velhos limites. Agora podemos criar fantasias, mundos imaginários em que tudo fará sentido. E essa ideia tentadora, colocada em prática, leva ao totalitarismo.
Minha infelicidade, minha angústia, meus medos, tudo isso gera a necessidade de explicar tais fracassos como responsabilidade de terceiros, de alguém. É o “sistema”, a “sociedade”, o “capitalismo” que não me permitem viver nessa harmonia plena e total. A política passa a ser vista, então, como o canal para consertar isso, para buscar esse mundo perfeito aqui e agora.
Surge, então, a religião política, uma seita ideológica que enxerga no estado uma espécie de deus laico da modernidade. Qualquer humildade epistemológica é deixada de lado, toda consciência de nossos limites cognitivos é abandonada, e em seu lugar vem a certeza de se encontrar do lado certo da Histórica, como o detentor da Verdade absoluta. É tudo tão óbvio para mim! Tem que ser para os demais também.
O tipo de temperamento acaba sendo fundamental para atrair adeptos dessa forma de ver o mundo. Por isso Razzo insiste que não é uma exclusividade da esquerda ou da direita, e sim uma mentalidade que pode abranger todos os espectros ideológicos. A imaginação totalitária seduz aquele perfil monista, que rejeita a pluralidade, que não convive bem com as imperfeições e os limites da vida real. O fascismo, o nazismo, o comunismo: todos são exemplos claros do fenômeno.
“A política, entendida a partir dos seus devidos limites, deve significar justamente a arte de mundos possíveis em detrimento da construção imaginária de mundos ideais e nostálgicos”, diz Razzo. Mas o totalitário não suporta isso. Ele quer regressar a um passado idílico ou chegar a um futuro utópico. O estado deixa de ser um ente fiscalizador, formado por humanos imperfeitos, e passa a ser “moralizador, estético e salvador”.
A condição humana é dada, mas os totalitários não admitem isso. Adotam como premissa uma plasticidade infinita de nossa natureza, defendem o mito do “bom selvagem”, pregam a “engenharia social” como mecanismo de criação do “novo homem” e da “nova sociedade”. Mas, como lembra Razzo, “nossa grandeza está contida no reconhecimento sincero da nossa própria miséria”.
Para o totalitário, a política não é mais um meio, e sim o fim em si. Seu desejo último é “glorificar o poder do Estado como detentor do monopólio não do uso legítimo da violência, mas do monopólio simbólico da verdade absoluta e da imortalidade, portanto, da experiência última da ordem final e, consequentemente, da decisão sobre a vida e a morte”. O totalitário pretende substituir Deus.
E eis o que esse tipo de mentalidade produz: a legitimização da violência, pois redentora. É fruto de uma perversidade, trata-se de uma violência deliberada, calculada, projetada e intelectualmente legitimada. “O homem sucumbe ao atentado contra sua própria humanidade: a violência com conhecimento de causa a fim de transformar a própria natureza, superá-la em sua insuficiente fraqueza”.
Como exemplos de novos grupos totalitários, hoje mais descentralizados do que os anteriores, Razzo cita os movimentos das “minorias”, os black blocs, os invasores de terras rurais ou urbanas, toda militância que precisa profanar valores tradicionais, depredar, usurpar a propriedade privada, destruir símbolos religiosos. Todos eles podem indicar “uma quantidade generosa do ímpeto totalitário porque revelam essa lógica da perversão: a desorganização da cultura correspondente a uma vontade de potência destruidora e anárquica”.
O esquema mental sugerido por Razzo é o seguinte: “Quando deformada, tal como é a imaginação idílica e diabólica, ao ser confrontada com a realidade, a imaginação totalitária se transforma em ato puro de desilusão e ressentimento. A desilusão, difusa, transforma-se em angústia. A angústia, em medo. E o medo, em violência redentora”. Por não suportar a angústia da vida, o totalitário parte para a destruição em nome da redenção total.
Como o mundo só não é melhor porque o outro não permite (“o inferno são os outros”, dizia Sartre), então é necessário eliminar todos os obstáculos do caminho, a começar por esse outro. Podem ser os judeus para os nazistas, os kulaks para os soviéticos, os capitalistas para os comunistas, cada mente totalitária escolherá seu bode expiatório, aquele que impede a realização de seus sonhos, de sua felicidade.
Os ideais totalitários, assim, plantam as sementes das tragédias. “Como Raskólnikov, o perturbado personagem principal de Crime e castigo, de Dostoievski, às vezes não somos capazes de resistir à tentação de nos imaginarmos como o exemplo histórico de homens extraordinários, que estão acima do bem e do mal”. E como “homens extraordinários”, temos então o direito de eliminar os “piolhos” de nosso caminho, esses entraves para a construção de um “mundo melhor”.
Todos precisamos de uma fuga para esse mundo frio e sem sentido. O problema é quando tal esperança é depositada na política. Como diz Razzo, “A arte talvez fosse o lugar mais indicado e adequado para realizarmos os nossos mais elevados ideais desde que a política fique fora disso”. Na mesma linha, Mario Vargas Llosa concluiu: “Devemos buscar a perfeição na criação, na vocação, no amor, no prazer. Mas tudo isso no campo individual. No coletivo, não devemos tentar trazer a felicidade para toda a sociedade. O paraíso não é igual para todos”.
Por fim, vale notar que o livro de Razzo conta com uma beleza particular: tem um tom autobiográfico. Relata sua experiência de adolescente ateu e seguro de suas “ideias racionais”, que recomendou um aborto a um casal de amigos. O feto era um “piolho” que poderia ser eliminado pela visão utilitária. A coisa mais racional a fazer era se livrar do estorvo. Hoje, Razzo dedica um bom tempo ao combate do aborto. Seu livro também pode ser visto como sua tentativa de se “purificar”, de se redimir desse “pecado”, e valorizar a vida humana, sagrada, ainda que limitada, imperfeita.
Afinal, o argumento de que podemos matar para evitar sofrimento é perigoso: “A tentação do diabo poderia ser levada até as últimas consequências: para acabar com o sofrimento no mundo, só mesmo acabando com o homem. Mas não desejamos acabar com o homem”. Não! Não somos niilistas. Nós desejamos valorizar o homem, cada homem, cada vida, como uma finalidade em si mesma. É quando esse princípio começa a ser relativizado que nasce a fagulha da imaginação totalitária.
Rodrigo Constantino