Não interessa o poder que reine nos céus da política, a vida intelectual na França tende a adotar os modos e maneiras dos jacobinos.
Na busca pela autenticidade, o esquerdista tem uma necessidade permanente de um inimigo. Seu sistema é o da destruição. Ele sabe do caráter ilusório dos valores e encontra sua identidade em uma vida vivida sem os enganos fáceis que regram a vida de outros. Já que ele não tem valores, a seu pensamento e a sua ação pode ser dada somente uma garantia negativa.
O inimigo deve ser uma fonte de mistificação e engano; ele deve também possuir um poder elaborado e secreto, poder sustentado através de um sistema de mentiras que subjaz seus valores. Um inimigo tal merece ser desmascarado, e há um tipo de virtude heróica em seu agressor, que liberta o mundo de tal asfixiante e secreta influência.
Sob a influência dupla de Marx e Flauber, o burguês emergiu do século XIX como um monstro que se esquecera de suas origens humildes. Ele era o “inimigo de classes” do dogma leninista, a criatura a quem somos convocados pela história a destruir; era também o depositário de toda moralidade, toda convenção, todos os códigos de conduta que poderiam impedir a liberdade e esmagar toda ebulição da vie bohème.
A burguesia finalmente emerge como a defensora de uma ilusória “normalidade”, preocupada em proibir e oprimir todos aqueles que, ao desafiar sua normalidade, desafiam também o domínio social e político que ela valida e dissimula.
O “burguês” da recente iconografia é um mito. Mas ele carrega uma semelhança com o cidadão comum que, vendo-se distorcido neste retrato, fica perturbado com o pensamento de possibilidades morais. De forma entusiástica, ele confessa crimes puramente hipotéticos. Começa a exaltar o gauchiste como o absolvedor de sua consciência corrompida. O galchiste, então, torna-se o redentor da classe cujas ilusões ele foi convocado a desmascarar, nada mais que a virtude necessária de sua profissão – ele desfruta de abundante privilégio social.
Escolhi Michel Foucault, o filósofo social e o historiador das ideias, como o representante da esquerda intelectual francesa. Deve ser ressaltado, ademais, que a posição de Foucault foi constantemente cambiante e que ele mostra um sofisticado desprezo por todos os rótulos disponíveis. Ele é também um crítico (embora, até seus últimos anos, um crítico um tanto quanto calado) do comunismo moderno. No entanto, Foucault é o mais poderoso e ambicioso daqueles que buscaram “desmascarar” a burguesia, e a posição da esquerda foi substancialmente reforçada por seus escritos.
O tema que unifica a obra de Foucault é a busca pelas secretas estruturas de poder.
Cada episteme, para Foucault, é a serva de algum poder ascendente, e teve, como sua função principal, a criação de uma “verdade” que serve ao interesse do poder. Assim, não há verdades estabelecidas que não sejam também verdades convenientes.
A província da linguagem e a província da razão são coextensivas, e se a loucura contém suas próprias “verdades”, como Foucault proclama, estas são essencialmente inexprimíveis. Como, então, podemos imaginar corretamente uma “linguagem” da desrazão na qual as verdades da loucura são expressas, e para a qual devemos agora afinar os ouvidos? A ideia de uma tal linguagem é a ideia de um monólogo delirante, que nem o homem da razão, nem o próprio louco poderiam entender.
No século XIX, a loucura tornou-se uma ameaça a toda estrutura da vida burguesa, e o louco, ainda que superficialmente inocente, é profundamente culpado por sua falência em submeter-se às normas familiares. A maior ofensa da loucura é contra a “família burguesa”, como Foucault a chama, e é a experiência desta família que dita a estrutura paternalista do asilo.
A retórica de Foucault vem para nos hipnotizar de alguma forma numa intrínseca conexão entre “burguesia”, “família”, “paternalismo” e “autoritarismo”. Fatos históricos – tais como a família camponesa ser mais autoritária; a família aristocrática ser mais paternalista que a família conhecida como “burguesa”; ou a classe média mostrar uma capacidade para acalmar a agitação da vida doméstica, o que raramente combinou com a parte mais alta e mais baixa do espectro social -, todos estes fatos são esquecidos.
É natural que a ascensão quase simultânea do sistema prisional, do hospital e do asilo de lunáticos não vai passar despercebida pelo suspeito iconógrafo do homem burguês. E há algo persuasivo na análise inicial foucaultiana da transição das punições exemplares de nossos ancestrais ao sistema de confinamento físico.
“É suspreendente que prisões se assemelhem a fábricas, escolas, quartéis, hospitais; que todos pareçam prisões?”, pergunta Foucault.
Não, não é surpreendente. Pois se desmascararmos as instituições humanas o suficiente, sempre encontraremos este núcleo escondido de poder pelo qual Foucault se sente fascinado e ultrajado. A única questão é se este desmascarar revela a verdade sobre seu assunto, ou se não é, pelo contrário, uma nova e sofisticada forma de mentira.
O que não é trivial é a ideia inteiramente sem garantia e ideologicamente inspirada de dominação com a qual Foucault lustra suas conclusões. Ele logo assume que, se há poder, então ele é exercido nos interesses de algum agente dominante. Assim, por uma artimanha, ele é capaz de apresentar qualquer ocorrência de ordem social – até mesmo a disposição para curar o doente – como um exercício furtivo de dominação que busca manter os interesses “daqueles no poder”.
Como uma instância de uma velha confusão marxista (a confusão que identifica uma classe como o produto do poder, e então o poder como a busca de uma classe), a análise de Foucault pode ser deixada de lado. Mas é necessário relembrar suas importantes consequências políticas.
Isto significa que toda “justiça” será reduzida a uma “luta” entre facções opostas, um julgamento por ordálio, no qual, presumivelmente, aquele que fala com a voz do proletariado receberá o prêmio.
Em resumo, é somente a maior ingenuidade, sobre a natureza e a história humana, que pode permitir a Foucault acreditar que sua “justiça proletária” é uma forma de justiça, ou que, na luta em busca dela, ele está libertando a sociedade da ferrugem do poder. Pelo contrário, toda ordem social é composta do “poder” de Foucault, e um Estado de direito, que é a mais alta forma de ordem, é simplesmente a melhor e mais mitigada forma dele.
O ‘desmascarar” de Foucault revela não a essência da ação e do pensamento humanos, mas meramente a substância subjacente da qual as instituições humanas e a própria vida são feitas. Reduzir tudo a este núcleo “escondido” é, em efeito, reduzi-lo a nada. E não poderíamos nos surpreender ao ver que é precisamente este nada que se torna, assim, o deus escondido.
Nota do blog: trechos retirados do livro Pensadores da Nova Esquerda, de Roger Scruton, publicado pela É Realizações.