Quando o PT ainda estava no poder e o Brasil corria o risco real de virar uma Venezuela, eu escrevi, comentei em vídeos e falei em palestras, sempre “baixinho”, que isso dificilmente aconteceria, pois o PMDB salvaria nosso país e nossa democracia. Era preciso fazer análise independente, mesmo ruborizado pela conclusão, envergonhado com nossa triste realidade. Se o fisiologismo da nossa política impedia reformas liberais que aproximariam o Brasil de um Chile, ele também evitaria, por outro lado, que virássemos Cuba ou Venezuela. O PMDB não deixava o país decolar, mas tampouco o deixaria afundar. Dito e feito.
O “centrão”, tão bem representado pelo agora MDB, desperta revolta em todos aqueles, sérios ou não, que desejariam governar sem intermediários. Sabe quem odeia o “pemedebismo” e tem até livro sobre o assunto? O filósofo Marcos Nobre, claramente de esquerda. Lula queria governar sem o PMDB também, mas foi convencido por José Dirceu a ceder, e nasceu o “mensalão”. Mas note-se: a escolha desse caminho foi porque os petistas queriam “governar” sozinhos!
O governo Bolsonaro está num claro impasse: venceu com um discurso de inovar e enterrar a “velha política”. Ao mesmo tempo, como vários alertaram, não seria possível aprovar reformas importantes, que demandam três quintos no Congresso, com “prensa” da sociedade, bancadas temáticas ou puro patriotismo. Quem acreditou nisso embarcou numa fantasia romântica, numa farsa. Como aprovar as reformas necessárias sem articulação com o Congresso?
Quando fazemos essa pergunta, já somos acusados de defensores dos corruptos. Em primeiro lugar, articular com deputados não necessariamente significa aderir aos métodos corruptos. Ceder em alguns pontos, abrir mão de outras pautas menos prioritárias, até mesmo aceitar indicações para cargos – desde que ressalvada a importância do preparo técnico -, tudo isso não é corrupção ou “velha política”, mas simplesmente a política como ela é, no Brasil e no resto do mundo.
Os bolsonaristas, agora, adotam um discurso purista, jogando a responsabilidade para o Congresso e culpando a imprensa por não cobrar dos deputados uma postura patriótica. Mas quando bolsonaristas apoiaram o mesmo Rodrigo Maia para presidir a Câmara, por cálculo pragmático, não houve a mesma reação. Quando fecharam com Davi Alcolumbre contra Renan Calheiros, não houve histeria, pelo contrário: bolsonaristas celebraram o que acharam ser prova de força da base, sendo que era muito mais revolta contra Calheiros, como apontei na época.
Kim Kataguiri apontou para a contradição: “PSL na eleição para a presidência da Câmara: ‘precisamos ser pragmáticos, só Maia consegue garantir maioria e conduzir a previdência’. PSL agora: ‘Maia está sabotando a reforma em nome da velha política! Vamos derrubar o Congresso! Fora todos!’ Falta coerência”.
Flávio Quintela também comentou sobre essa postura incoerente: “A bolsosfera nunca muda. O apito de cachorro da vez é ‘presidente não precisa negociar: joga os projetos nas mãos do Congresso e o problema é deles’. Se o mito estivesse negociando, diriam que manja tudo de política. Como não está, dizem que é porque não faz toma-lá dá-cá”.
Os mesmos que não querem que Bolsonaro faça articulação com o Congresso agora, mesmo ao custo de fracassar a reforma previdenciária (e a economia e seu governo também), aplaudiram o pragmatismo de quando Bolsonaro articulou com Luciano Bivar para sair candidato pelo PSL. Diziam, com razão, que não havia alternativa, era isso ou a volta do PT. E hoje tem opção concreta, por acaso?! E alguém acha que a negociação com Bivar foi 100% altruísta, patriótica e republicana? Sério?
O impeachment de Dilma Rousseff, que salvou o Brasil do destino venezuelano, também não foi conquistado graças ao protagonismo de Eduardo Cunha? Claro que as manifestações nas ruas ajudaram. Não descarto a relevância da pressão popular. Quero apenas mostrar que foi, sim, o demonizado MDB que permitiu que o impeachment ocorresse, ainda que por puro senso de sobrevivência, e não patriotismo.
O Brasil corre sérios riscos de morrer na praia, de ver um governo que despertou muitas esperanças em milhões de brasileiros naufragar antes de começar, praticamente. A ala mais radical e jacobina dentro do governo fala, de forma utópica e até irresponsável, em “imaginação moral” para driblar a necessidade de negociar com o Congresso, como se fosse possível fazer “nova política” com “o povo” nas ruas – um pensamento perigoso e revolucionário. Essa turma parece crer que o Twitter é mesmo um bom substituto para o Parlamento. É temerário!
Comparam com Trump nos Estados Unidos, ignorando inúmeras diferenças, como o bipartidarismo americano, e também o fato de que o próprio Trump não conseguiu aprovar várias medidas, inclusive seu muro que continua apenas no papel, ou repelir o Obamacare, que segue intacto. Há muitas mudanças com o “empoderamento” dos cidadãos por meio das redes sociais, sem dúvida, mas sonha quem acha que isso elimina a necessidade de articulação política. Um sonho autoritário, diga-se, pois sempre que alguém acredita representar “o povo” sem a necessidade de intermediários, estamos diante de um potencial fascista.
Hugo Chávez também tentou ir pela via da “democracia direta”, jurando incorporar o desejo da “vontade geral”. Isso é Rousseau na veia, Robespierre, jacobinismo. É onde extremistas de esquerda se encontram com aqueles de direita. Por mais que detestemos a política como ela é, o fisiologismo, a troca de interesses, é preciso lembrar que os deputados também foram legitimamente eleitos e representam sua base de eleitores, com seus interesses difusos. E é preciso lembrar que articulação não precisa ser sinônimo de corrupção, de mensalão.
Bolsonaro precisa, sim, assumir maior liderança no processo de votação das reformas. Não basta apresentar para o Congresso. A narrativa de que o poder Executivo é sempre movido por belos objetivos patrióticos, enquanto o Legislativo é um antro de corruptos, não passa de um discurso autoritário e golpista. Como o editorial da Gazeta do Povo argumenta, “O momento requer, especialmente de Bolsonaro, mas também de todos os atores envolvidos na reforma da Previdência, um forte sentido de responsabilidade, e de uma vigorosa capacidade de liderança”.
“O verdadeiro líder consegue gerar o entusiasmo necessário que une forças – em vez de dividi-las – para realizar um determinado fim, diminuindo muito a necessidade de se fazer concessões que podem se revelar prejudiciais num futuro próximo”, continua o jornal. É hora de agregar, de unir forças, mas isso parece estranho e difícil demais a quem fez carreira política com discurso de guerra, combate, antagonismo.
Dividir para conquistar sempre foi a tática petista, e também bolsonarista. Enxergar inimigos por todo canto é o que tem feito a ala radical do governo, enquanto o país precisa de união. Sim, mesmo com aqueles que são considerados “comunistas” pelos reacionários, ou seja, os deputados de centro ou centro-esquerda. Ou por acaso o PSL tem os 60% dos votos necessários?
Se a reforma não passar, não se enganem: o caos será grande e a população vai culpar o governo, ou seja, o presidente Bolsonaro. Quem acha que é possível investir numa narrativa de que a tragédia foi responsabilidade de Maia e do Congresso, blindando o presidente, não entende muito de política ou da natureza humana. Quem acha que “o povo” está e estará sempre com o “mito” tampouco compreendeu o fenômeno que elegeu Bolsonaro.
O fracasso da reforma será colocado na conta de Bolsonaro, e com muita razão. E isso será o maior presente que a esquerda radical poderia pedir na vida. É hora de acordar, antes que seja tarde demais…
Rodrigo Constantino